1 de abril de 2008

Juventude, telemóveis, escola e responsabilidades. "Geração do Ecrã" (Alice Vieira)



Gostaria de ter tido mais espaço para aprofundar bastante mais o tema que é complexo e polémico. Felizmente em relação aos meus filhos acho que tudo correu bem, até hoje, são jóvens equilibrados, conscientes. Penso que o meio onde cresceram (Ilha de Santa Maria) foi fundamental para aquilo que eles são hoje. De qualquer forma a abordagem que faço não esgota, nem para lá caminha, o tema.
E porque não esgota, tomo a liberdade de transcrever texto da autora Alice Vieira publicado no Jornal de Notícias, depois da minha cronica.

Bom dia!
O País foi surpreendido há poucos dias por imagens da cena passada numa sala de aula em que uma jovem reage de uma forma violenta à atitude de uma professora que lhe tenta tirar o telemóvel da mão, telemóvel esse que a moça teria utilizado em plena aula. Toda a gente ficou chocada, até a Mãe da jovem. Em todo o Portugal se discutem as responsabilidades e se diz que esta juventude é pior do que qualquer juventude anterior, que não há respeito, que antigamente é que era. Que nunca se ouviu falar nem se imaginou possível chegar-se a um tal nível de desrespeito. Só falta desenterrar Salazar para que venha restabelecer a ordem. Muitos culpam a Democracia, o 25 de Abril. Talvez que a Democracia seja “culpada” de nos ter aberto os olhos o os horizontes que por falta dela durante tantos anos tivemos. Durante anos tivemos falta de tudo, de acesso à cultura nas suas mais vaiadas formas pois era-nos servida a “ementa” que o poder queria que comêssemos: hortaliça com couves ao almoço e couves com hortaliça ao jantar, ou seja: Fado e futebol ao almoço e ao jantar futebol e fado. Em termos económicos havia os patrões que eram os ricos, os remediados, alguns e os resto do Povo os Pobres. Ia estudar quem podia, ou seja, uma mão meio cheia de privilegiados. No meu tempo de criança, antes do 25 de Abril, em casa dos meus Pais as roupas eram cerzidas, cosidas, remendadas, os colarinhos virados, as calças e os casacos do meu Pai adaptadas ao corpo dos meus irmão e mesmo ao nosso, as roupas compradas para a minha irmã mais velha passavam para as mais novas, vestíamos felizes a roupa dada pela filha do patrão do meu Pai, e os sapatos levavam solas e era o meu Pai quem as punha. Recordo que uma vez um dos meus irmãos teve o seu primeiro par de sapatos novos comprados na Sapataria Varela, dormiu nessa noite com eles debaixo do travesseiro tal foi a alegria; a minha primeira prenda de Natal sem serem as habituais e possíveis nozes, avelãs, figos passados e uns chocolatinhos foi uma caixa com 6 plasticinas teria eu pelos meus 10 anos. A minha primeira boneca tive-a aos 12 e assim por diante.

Ora, esta minha geração que viveu privada de tudo, até de água canalizada e esgotos e principalmente da liberdade até de pensar, somos os pais e avós dos jovens que povoam as escolas e de quem se diz que nunca os houve tão malcriados, tão desrespeitadores, tão preguiçosos, tão desleixados, tão porcos. Isto dá que pensar pois se eles são nossos filhos, nós seremos os maiores responsáveis pelo facto de eles serem o que são, já que para além dos da nossa geração seremos seus pais, são seus professores, são seus governantes. Quer dizer que eles são o que quisemos que eles fossem, portanto não conseguimos transmitir-lhes o sentido da responsabilidade, o sentido do valor da vida. É isso, não lhes transmitimos VALORES de espécie nenhuma, cívicos, nem morais, nem religiosos, nem respeito pelos seus próprios corpos nem pelos dos outros pois cada vez mais cedo iniciam a vida sexual activa impreparados, tatuam-se, usam piercings, fumam, consomem drogas. Não lhes ensinamos o que é a Democracia, o que é participar na sociedade, no futuro. A maioria dos jovens com direito a voto não está recenseada. Nós que tão pouco tivemos damos demais aos nossos filhos, estragamo-los com a fartura de tudo, quando eram pequenos demos-lhes os brinquedos que não tivemos, alinhámos nas guerras das roupas e sapatilhas de marca que alguém inventou para vender mais. E nós lá fomos dando as consolas, os jogos que os alienaram do convívio familiar. Deixamos de ter tempo para lhes dedicar ou eles deixaram de ter tempo para nos aturar pois é mais agradável estar fechado no quarto olhos na consola a jogar os jogos violentos que lhes leva a adrenalina ao rubro e onde os não heróis acabados de morrer ressuscitam por magia para um novo “round”. A fantasia dos jogos passa a realidade para as ruas, recreios, corredores e salas de aula das escolas. Os Pais, nós, demitem das suas responsabilidades de educadores e passamo-la para as escolas, as escolas demitem-se da sua autoridade, o estado desautoriza as escolas e andam os nossos filhos sem Rei nem roque, à deriva. A escola deve ensinar e a família educar, mas estes papéis interpenetram-se e ambos devem ser desempenhados por ambas as instituições, mas os pais assumindo inequivocamente a sua missão educativa e a escola a sua missão lectiva.

O País fica de boca aberta diante de uma menina histérica que nunca deveria ter entrado na sala de aula de telemóvel ligado, muito menos usá-lo, mas como, certamente, em casa ela está à mesa a comer e a mandar SMS e a responder a quem lhe liga como pode ela entender que há lugares e situações em que as conversas com as amigas podem e devem esperar? Entendemos nós, os seus Pais? Não fazemos, nós, o mesmo? Não vemos os nossos políticos nas Assembleias telemóvel ao ouvido em plena sessão? Não conduzimos e falamos ao telemóvel em simultâneo? Somos exemplo pela positiva?

Como disse a Democracia é “culpada” porque nos abriu ao mundo, mas os cinquenta anos de opressão, obscurantismo e fascismo que nos cuartou todas as liberdades e nos manteve na pobreza de tudo, deixou sequelas que demorará algum tempo a ultrapassar. Reconheçamos os nossos erros e arrepiemos caminho. Façamo-nos exemplo e teremos a moralidade de repreender, exigir dos nossos filhos que sejam respeitadores das regras que devem existir e ser seguidas por todos.

Abraços marienses
Árvore, 01 de Abril de 2008
Ana Loura
Geração do ecrã
Por Alice Vieira, Escritora

Desculpem se trago hoje à baila a história da professora agredida pela aluna, numa escola do Porto, um caso de que já toda a gente falou, mas estive longe da civilização por uns dias e, diante de tudo o que agora vi e ouvi (sim, também vi o vídeo), palavra que a única coisa que acho verdadeiramente espantosa é o espanto das pessoas.

Só quem não tem entrado numa escola nestes últimos anos, só quem não contacta com gente desta idade, só quem não anda nas ruas nem nos transportes públicos, só quem nunca viu os "Morangos com açúcar", só quem tem andado completamente cego (e surdo) de todo é que pode ter ficado surpreendido.

Se isto fosse o caso isolado de uma aluna que tivesse ultrapassado todos os limites e agredido uma professora pelo mais fútil dos motivos - bem estaríamos nós! Haveria um culpado, haveria um castigo, e o caso arrumava-se.

Mas casos destes existem pelas escolas do país inteiro. (Só mesmo a sr.ª ministra - que não entra numa escola sem avisar…- é que tem coragem de afirmar que não existe violência nas escolas…)

Este caso só é mais importante do que outros porque apareceu em vídeo, e foi levado à televisão, e agora sim, agora sabemos finalmente que a violência existe!

O pior é que isto não tem apenas a ver com uma aluna, ou com uma professora, ou com uma escola, ou com um estrato social.

Isto tem a ver com qualquer coisa de muito mais profundo e muito mais assustador.

Isto tem a ver com a espécie de geração que estamos a criar.

Há anos que as nossas crianças não são educadas por pessoas. Há anos que as nossas crianças são educadas por ecrãs.

E o vidro não cria empatia. A empatia só se cria se, diante dos nossos olhos, tivermos outros olhos, se tivermos um rosto humano.

E por isso as nossas crianças crescem sem emoções, crescem frias por dentro, sem um olhar para os outros que as rodeiam.
Durante anos, foram criadas na ilusão de que tudo lhes era permitido.

Durante anos, foram criadas na ilusão de que a vida era uma longa avenida de prazer, sem regras, sem leis, e que nada, absolutamente nada, dava trabalho.

E durante anos os pais e os professores foram deixando que isto acontecesse.

A aluna que agrediu esta professora (e onde estavam as auxiliares-não-sei-de-quê, que dantes se chamavam contínuas, que não deram por aquela barulheira e nem sequer se lembraram de abrir a porta da sala para ver o que se passava?) é a mesma que empurra um velho no autocarro, ou o insulta com palavrões de carroceiro (que me perdoem os carroceiros), ou espeta um gelado na cara de uma (outra) professora, e muitas outras coisas igualmente verdadeiras que se passam todos os dias.

A escola, hoje, serve para tudo menos para estudar.
A casa, hoje, serve para tudo menos para dar (as mínimas) noções de comportamento.

E eles vão continuando a viver, desumanizados, diante de um ecrã.

E nós deixamos.
Alice Vieira

9 comentários:

  1. Parabéns Ana
    Ao deambular pelo blog do Zé Cunha achei o seu comentário interessante e resolvi entrar no seu blog e ainda bem que o fiz.
    O reu artigo sobre os jovens está óptimo.
    Eu estou de acordo que este País só melhora quando os jovens forem ensinados que o príncípio da vida é o respeito. Por si e pelo próximo.
    Trabalhei numa escola quase 40 anos e a degradação e formação dos jovens assusta.
    Considero-me feliz, pois eduquei dois filhos e consegui transmitir-lhe os valores (respeito,trabalho, lutar pela vida).
    O meu filho mais velho faz amanhã 36 anos e eu digo todos os dias: obrigada Meu Deus, tive sorte com os filhos.
    Espero que o problema de um telemóvel tenha acordado os adultos deste país...........
    Um abraço da Poveira

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  2. Como estou de acordo contigo, Ana!
    Adorei este teu Grito!
    Jinhos mil

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  3. Excelente texto!
    Ainda iremos a tempo? Talvez dos netos...

    Abreijo.

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  4. Ana, tira a boneca, troca as avelãs por alfarrobas, e no resto ficam os teus Natais iguais aos meus naquele tempo.
    Quanto à questão da "geração rasca", quando ela apareceu eu fiz um artigo em que dizia mais ou menos o que dizes no teu comentário ao famoso telemóvel. (Olha, naquele tempo isso não fazia falta nenhuma. Uma vizinha de Santana, quando queria chamar o filho ou uma das filhas, subia para um muro e gritava que se ouvia em Santana toda. Por pura coincidência, no livro que escrevi sobre Santa Maria esse rapaz aparece numa foto, com bilhas de leite e um cão ao lado. Se ele tivesse sabido que estava a ser fotografado para um livro cujo texto seria meu, teria ficado muito contente. Era com quem mais eu brincava, e até refiro no final uma das nossas brincadeiras favoritas, sem dizer, porém, o nome. Entretínhamo-nos a tirar mel das abelhas selvagens.)

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  5. Olá, há algum tempo que não entro no teu blog,com pena mas por vezes ando um pouco sem vontade de usar o computador .cansaço - Hoje por acaso tirei-me da apatia e vim ver o que tens escrito, em boa hora o fiz pois o teu artigo fez-me muito bem - com ele mostras muita sabedoria de vida . Os anos dificeis de viver foram os nossos e no entanto com pouco eramos felizes. Agora tanto os filhos como nós de tudo temos e parece que nada nos contenta. Mas Ana, a tecnologia embora muitas vezes seja usada abusivamente, neste caso até foi útil, é que se não fosse o famoso telemóvel (que agora se sabe ter sido afinal autorizado pela própria professora) talvez ainda não nos tivessemos apercebido do que se passou naquela escola e noutras o mesmo se ha-de passar - Mas Ana também não concordo com o que se passou, mas sempre te quero dizer uma coisa: a violência gera violencia e muitas vezes a culpa não está só nos alunos está também nos professores que não sabem manter o respeito. Sabes eu penso que se um dia um aluno se lembrar a usar o telemóvel para fotografar a violência que certos professores teem para com os alunos, que muitas vezes chegam a casa com as mãos do professor marcadas no rosto e quando os pais perguntam o que aconteceu e o filhos se calam com medo da represália do dia seguinte nesse dia o que diremos todos se isso aparecer na TV? casos destes sei eu, aconteceram e eu fui alvo deles. Dizer o quê neste caso ? que a culpa é da tecnologia ou da má formação do Professor? Os nossos filhos são bons quando os professores forem bons . culpas há claro, mas não são só dos alunos, houve e haverá sempre excepções. Eu que fui vitima da violencia de um professor e como eu muitos outros nessa altura precisavamos era de ter coragem e denunciar mas quem acreditaria ? ainda hoje passados tantos anos isso acontece nas escolas e eu só digo haja coragem e um temóvel para denunciar quem com educação usa e abusa da sua autoridade- não concordo com o que aconteceu mas também não concordo que se diga que a culpa está só nos alunos ou nos pais que não sabem educar.Espero que esta história agora passada a vidio traga algum ensinamento não só para os alunos mas também para muitos professores que só porque nem todos os alunos aprendem à primeira tratam de os maltratar e mesmo humilhar perante os colegas, aqui também precisava de um vidio para retratar cenas destas .
    L.A.

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  6. Antes o Pasquim das 3x3 era perito em descobrir coisas.Agora não se passa nada.Agora vê-se que aquilo era só negócio.Desalojar a concorrência para ficar com os subsídios.
    No Pasquim a Regiâ vá na sande do prográsse! Quando os eleitores estiverem fartos do estado deploravel em que isto se transformou- morre o govârne e morre o pasquim das 3x3- aquile vá fechá as portes!
    O pasquim já começa a dar alguns elogios à oposeçã- não vá o diabo tecê-las e a mama fugir.Só que os que vierem não quererão saber de ustentar quem tanto beneficiou o politburo!

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  7. Estou de pleno acordo contigo.
    O que falta mesmo é boa educação, mas de berço, de casa.
    Tenho 2 filhos pequenos, e tento educálos da melhor maneira, para mim era inconcebivel que fizessem uma coisa dessas.

    beijos atlanticos

    sandra

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  8. Chego ao seu blogue após deambulações pela net. Felicito-a pelo trabalho desenvolvido.
    Nestes comentários sobre a famigerada cena do telemóvel estão opiniões com as quais concordo; mas reparo que há um aspecto não focado e que tem a ver com a importância dos audiovisuais nestes tempos. É minha convicção que enquanto a Escola não utilizar, em força, o audiovisual, pelo menos em determinadas etapas -no básico e no secundário - os problemas não desaparecerão. Os miúdos crescem envolvidos em baterias de equipamentos: nitendos, game boys, play station, televisão, computadores, telemóveis, etc..e não é possível ignorá-los..Assim, penso que a Escola tem de utilizar as mesmas "armas" , tem de investir num Ensino suportado pela imagem, pelo "jogo" , usando esses suportes para passar conteúdos, sempre, naturalmente, com a condução dos professores...que não têm outro remédio senão adaptar-se a estas modernidades.
    A não irmos por aqui, será cada vez maior o fosso entre alunos e escolas,entre jovens e a educação
    Por muito boa vontade que exista.

    Saudações de um "corisco" em Lisboa

    João Coelho

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  9. Eu usei um ecrã para ler isto... é redutor culpar o ecrã. O ecrâ dá mais do que tira.

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