Maré de Agosto, 22 de Agosto de 2009
As fotografias não estão por ordem cronológica
"Mulheres de Atenas", título de canção de Chico Buarque que será título de programa de rádio sonhado há 25 anos, um dia...
23 de agosto de 2009
22 de agosto de 2009
19 de agosto de 2009
Daniel de Sá-"Santa Maria, uma declaração de amor"
Há privilégios que nada no mundo os paga e eu por vezes sou privilegiada, a vida lá me dá um presentinho que me faz feliz. Foi com alguma surpresa que recebi um e-mail de Daniel de Sá cujo assunto era: Vou até Santa Maria. Pensei que fosse título de algum dos seus escritos sobre a Ilha. Abro o e-mail e não, era mesmo a anunciar que viria a Santa Maria para apresentar uma comunicação no Colóquio sobre Roosevelt. Fiquei surpresa e o muito feliz. Toda a gente sabe que Daniel de Sá se tem recusado a sair da sua Maia por questões de saúde e inclusive não veio a Santa Maria aquando o lançamento do Ilha-Mãe, por isso este anúncio sabia tão bem. O meu cérebro começou a trabalhar a mil à hora, eu queria recebê-lo, eu queria acompanhá-lo, eu queria ser o cicerone neste regresso à Ilha-Mãe ao fim de, imaginava eu, tantos anos numa romagem de saudade. Queria estar presente em cada emoção, queria registá-las em fotografia tanto quanto o meu pudor na invasão do íntimo do meu amigo me permitiria. E estive sim, ao seu lado durante o tempo todo que pude estar desde que desembarcou até que embarcou, excepto o tempo em que na Segunda à tarde estive de serviço.
Para ti, Daniel:
Em Santa Maria não existe nenhum Manuel Cordovão e a casa que só foi chamada assim depois de lá morares, a tua casa, tu que foste pastor de cabras, ovelhas e vacas e agora o és de palavras, não terá nunca pastor que a guarde, que guarde os teus sonhos de menino a correr pelos pastos a corta mato saltando muros de pedra sobre pedra até aos Asas para ouvires os relatos de futebol e hóquei ou leres os jornais e pouco falta para que a casa seja apenas uma memória e um dia já não poderás apontar para o canto à direita quem entra e dizeres aqui era a cama onde eu dormia e depois os olhos a percorrerem num vagar emocionado de quem vê o que já não existe no resto dos pouquíssimos metros quadrados e “ali dormiam os meus pais, ali a minha irmã…a minha mãe costurava e vinham moças aprender com ela, não sei como cabia tanta gente aqui e muitas vezes faziam-se festas” Santa Maria é assim, a tua, a nossa Ilha-Mãe não sabe preservar, guardar os objectos, as casas os lugares marcados pelo passado que tem que ser futuro: a nossa Capela, a tal “que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus” levou-a o fogo e dela, a original, só resta a torre cujas pedras as mãos do teu pai afagaram. A reconstrução, dizes tu, mantém a traça da original; do ginásio, um dos melhores do país nos seus tempos áureos onde gerações seguidas praticaram as mais diversas modalidades já nada resta e da nossa casa de cinema, o Atlântida Cine onde o Sr. Cardoso te deixava entrar sem pagares bilhete, a ti e a mais umas quantas crianças, por causa dos bichos que lhe corroem os ossos e quem sabe por causa da falta de quem lhe tivesse acautelado a saúde, terá morte tristemente anunciada; das casas dos teus amigos, a do José Maria, a do teu padrinho, a de muitos outros restam os espaços cobertos de ervas; dos jardins onde as crianças dos bairros do aeroporto jogavam à bola até o polícia aparecer e lha “roubar” e os enxotar para casa a toque de ralhos e ameaças de acusá-los aos pais, jardins cuidados, floridos estão agora a monte.
Uma viagem de regresso à Ilha-Mãe, à saudade, à génese de ti na família, na Capela onde o Padre Artur te moldou a Fé no crescimento em graça, o teu padrinho a encaminhar-te os passos para o Externato para que crescesses também em sabedoria. Uma viagem de reencontros e encontros com pessoas que te amam, umas conhecendo-te desde sempre, o Rosélio, o Valente, o Hélder, a Zulmira, o Senhor Figueiredo, a esposa e a filha, o teu melhor amigo de infância…outras abraçando-te pela primeira vez, o Daniel, o Luís Candeias, o João Fontes, as minhas filhas.
Uma viagem em que mais uma vez expressaste o teu amor à Ilha-Mãe numa declaração de amor pública proferida no Congresso sobre Roosevelt ouvida no mais atento e emocionado silêncio. E eu ali, ao teu lado emocionadamente grata por me ter sido permitido estar apenas ali. Há privilégios que nada no mundo os paga e eu naquelas horas que passaram à velocidade do Concorde fui privilegiada.
Para ti, Daniel apenas obrigada meu querido amigo.
Para ti, Daniel:
Em Santa Maria não existe nenhum Manuel Cordovão e a casa que só foi chamada assim depois de lá morares, a tua casa, tu que foste pastor de cabras, ovelhas e vacas e agora o és de palavras, não terá nunca pastor que a guarde, que guarde os teus sonhos de menino a correr pelos pastos a corta mato saltando muros de pedra sobre pedra até aos Asas para ouvires os relatos de futebol e hóquei ou leres os jornais e pouco falta para que a casa seja apenas uma memória e um dia já não poderás apontar para o canto à direita quem entra e dizeres aqui era a cama onde eu dormia e depois os olhos a percorrerem num vagar emocionado de quem vê o que já não existe no resto dos pouquíssimos metros quadrados e “ali dormiam os meus pais, ali a minha irmã…a minha mãe costurava e vinham moças aprender com ela, não sei como cabia tanta gente aqui e muitas vezes faziam-se festas” Santa Maria é assim, a tua, a nossa Ilha-Mãe não sabe preservar, guardar os objectos, as casas os lugares marcados pelo passado que tem que ser futuro: a nossa Capela, a tal “que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus” levou-a o fogo e dela, a original, só resta a torre cujas pedras as mãos do teu pai afagaram. A reconstrução, dizes tu, mantém a traça da original; do ginásio, um dos melhores do país nos seus tempos áureos onde gerações seguidas praticaram as mais diversas modalidades já nada resta e da nossa casa de cinema, o Atlântida Cine onde o Sr. Cardoso te deixava entrar sem pagares bilhete, a ti e a mais umas quantas crianças, por causa dos bichos que lhe corroem os ossos e quem sabe por causa da falta de quem lhe tivesse acautelado a saúde, terá morte tristemente anunciada; das casas dos teus amigos, a do José Maria, a do teu padrinho, a de muitos outros restam os espaços cobertos de ervas; dos jardins onde as crianças dos bairros do aeroporto jogavam à bola até o polícia aparecer e lha “roubar” e os enxotar para casa a toque de ralhos e ameaças de acusá-los aos pais, jardins cuidados, floridos estão agora a monte.
Uma viagem de regresso à Ilha-Mãe, à saudade, à génese de ti na família, na Capela onde o Padre Artur te moldou a Fé no crescimento em graça, o teu padrinho a encaminhar-te os passos para o Externato para que crescesses também em sabedoria. Uma viagem de reencontros e encontros com pessoas que te amam, umas conhecendo-te desde sempre, o Rosélio, o Valente, o Hélder, a Zulmira, o Senhor Figueiredo, a esposa e a filha, o teu melhor amigo de infância…outras abraçando-te pela primeira vez, o Daniel, o Luís Candeias, o João Fontes, as minhas filhas.
Uma viagem em que mais uma vez expressaste o teu amor à Ilha-Mãe numa declaração de amor pública proferida no Congresso sobre Roosevelt ouvida no mais atento e emocionado silêncio. E eu ali, ao teu lado emocionadamente grata por me ter sido permitido estar apenas ali. Há privilégios que nada no mundo os paga e eu naquelas horas que passaram à velocidade do Concorde fui privilegiada.
Para ti, Daniel apenas obrigada meu querido amigo.
Deixo-vos o texto "Santa Maria, uma declaração de amor"
De: Daniel de Sá
Considero-me um privilegiado quando me chamam mariense. Porque, como filho destas ilhas, tenho a sorte de ter pai e mãe. Foi meu pai São Miguel, minha mãe, Santa Maria. E, se pode ter-se dupla nacionalidade, por certo que poderá ter-se dupla “insularidade”.
Sou mariense, sim, e julgo que de pleno direito. Cagarro e santaneiro. O que foi outro privilégio, ter vivido em Santana. Mais de oito anos, depois de quatro por São Pedro, na casa do Sr. Armando Monteiro, e seis meses na Ribeira do Engenho, numa casinha que era toda ao pé da porta e tinha o telhado à altura do caminho.
De São Miguel saí ainda de cabelos compridos, de que guardo uma vaga memória mas somente do dia em que mos cortaram, já em São Pedro. Antes disso, e da ilha onde fui gerado e onde nasci, só sei o que me contava minha mãe. Tempo esse em que uma criança de dois anos podia andar pelas ruas e ir até longe, no longe relativo do tamanho do corpo, sem deixar preocupado quem quer que fosse. Palmo e meio de pernas bastava para fugir facilmente das rodas de uma carroça ou de um carro de bois.
Muito cedo comecei a ser aluno da vida, em Santa Maria. Que belas lições recebi! Recordo a sabedoria de um povo a quem vi cavar um poço antes do tempo da sede. Aprendi a sua bondade em coisas tão simples como aquelas grandes pedras, postas ao alto à semelhança de pequenos menires, onde o gado ia roçar-se placidamente. A minha definição como pessoa começou a fazer-se com estes e com outros ensinamentos casuais ou espontâneos, sem pedagogia diplomada.
Pode parecer um contra-senso considerar um privilégio ter vivido em Santana, porque aquela era uma das aldeias mais rurais de Portugal. Nem havia sequer uma canada razoável que lhe fosse caminho. A que existia servia, em parte, como leito de uma ribeira, onde aflorava a rocha irregular posta a descoberto pela erosão. Durante séculos, foi a única via que levava a Vila do Porto. Maior isolamento do que aquele é difícil de imaginar. Ainda assim, em Santana nasceram e viveram pessoas de grande valor humano e social. Prodígios da superação.
De súbito, tudo mudou em 1945. Em Santana propriamente não, porque ela ficou imutável na sua rústica ancestralidade. Mas, mesmo ali ao lado, fora feito um aeroporto para ser um dos melhores e mais concorridos do Mundo. A Vila deixou de ser a principal referência, porque até na religião os de Santana se tornaram como que paroquianos da capela de Nossa Senhora do Ar, que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus. Ia-se e vinha-se usando atalhos desenhados por milhões de passadas, cortados aqui e ali por muros que era preciso saltar. A aldeia isolada ficara a poucos minutos de um mundo novo e impensável. Mas aquela gente recebeu-o quase com a mesma naturalidade com que via nascer o Sol todos os dias, o Sol que gretava o solo árido no Verão, depois de secos os lameiros do Inverno. Aquela gente, que resistira à angústia da fome, numa penúria humilhante e indigna da condição humana. Como um pouco por toda a ilha, aliás. Mas que manteve uma dignidade bíblica, porque a dignidade é um estado de espírito mais do que uma afirmação social.
A nossa casa nunca fora chamada casa antes de lá morarmos. E, nesse tempo, era um absurdo pensar que quem tivesse menos de dezasseis anos não podia trabalhar. Não o proibia a lei, e a isso obrigava a necessidade de as mães não terem falta do que pôr na mesa à hora de comer. Apesar disso, não lamento nada da minha infância.
Fui pastor de cabras, de ovelhas e de vacas. Cavalguei em pêlo e sem esporas nem freio, como os índios. Nunca ninguém me ensinou a ter medo do dia nem da noite. Fui cowboy ou índio na mata de Monserrate e nas do Aeroporto. Mas não estraguei nenhuma árvore, nem os meus companheiros de aventuras. Contei histórias ao meu amigo Elias, e contava-me ele outra por cada uma das minhas. Matávamos o menor número possível de personagens, quer fossem índios ou bandidos. Apenas o essencial para haver vencedores e vencidos.
Entretanto, ia aprendendo em livros ou num quadro preto. Primeiro na escola de Santana. Com a D. Eduarda na 1ª classe, a D. Doroteia, na 2.ª, a D. Úrsula, na 3.ª, a D. Francisca, na 4.ª. Continuam a ser das minhas heroínas preferidas. Fizeram o milagre de me ensinar a ler, de explicar que povo somos e a que terra pertencemos. Depois veio o Externato. Juntei à minha lista de heróis e de heroínas mais uns quantos predestinados para o bem e a sabedoria. Passei a pertencer também à geração do Cavaleiro Andante, sem dúvida a mais prodigiosa publicação juvenil que houve em Portugal. Não tínhamos dinheiro para livros nem revistas, por isso era o José Guilherme Correia que mo emprestava sempre. E alguns livros também, como o José Vieira Souto Martins, um amigo de que nada sei há meio século. Foi assim que pude ler Emílio Salgari, Mark Twain ou Enid Blyton.
E havia o Clube Asas do Atlântico. O Asas! Nunca ninguém me pôs na rua nem mostrou desagrado pela minha presença. Nem imaginavam o bem que me estavam fazendo. Ali ouvíamos os relatos do futebol e do hóquei das nossas alegrias patrióticas. E era onde eu tinha à disposição os principais jornais que se publicavam em Portugal. Um dos mais bem escritos era A Bola, e por isso, ao mesmo tempo que a rivalidade entre o Sporting e o Benfica era um dos principais factores de unidade dos Portugueses, o desporto, contado naquele jornal que mudou tanto que se pode considerar extinto, era também uma lição de cultura.
Não longe, o campo dos jogos épicos do futebol romântico de dois defesas, três médios e cinco avançados. Com o mítico Badjana a dar os últimos pontapés na bola, jogando pela equipa da Direcção do Serviço de Obras, onde meu pai trabalhava. Depois veio outro clube, o de Gonçalo Velho, para o qual minha mãe e minha irmã bordaram os primeiros emblemas.
No entanto, a alegria suprema tinha lugar reservado no Atlântida Cine. O seu porteiro deixava muitas vezes as crianças entrarem sem pagar bilhete. Por isso o Sr. Cardoso faz parte da minha lista de heróis particulares. E o grito “ó Cardoso, apaga a luz” ainda ecoa nas minhas recordações como o anúncio de todas as claridades. Outro benfeitor de homens a haver.
Na capela de Nossa Senhora do Ar aprendi o lado mais humano da vida. Aquele que pensa acima de tudo no que nos distingue dos irracionais. E, se é certo que sem uma fé sobrenatural se pode ser boa pessoa, o cristianismo à maneira do Padre Artur é o testemunho do bem na Terra.
Mas qualquer pedaço de mundo vale pelo que vale a sua gente. A do meu tempo era feita destas e de outras figuras que marcaram o modo de ser de um tempo e de uma geração em que havia na ilha mais forasteiros do que naturais dela. Sorte nossa que a maior parte dos que em Santa Maria buscaram um pouco mais de fortuna ou um pouco menos de infortúnio eram pessoas de deixar saudades. Por isso o reencontro com velhos pioneiros dos tempos modernos da Ilha de Gonçalo Velho é sempre um momento de festa que dificilmente tem semelhança quando as amizades foram feitas por outras bandas.
O próprio aeroporto, começado a construir durante a guerra, acabou por ser um lugar de passagem para a paz. Se, em 1918, Franklin Delano Roosevelt escolheu Ponta Delgada para apoio ao transporte de tropas a caminho da Europa, por aquelas pistas passaram sobretudo soldados de regresso a casa. O nome de código da operação, “Green Project”, era ele mesmo uma declaração de esperança numa nova era.
Foi neste ambiente, um dos espaços nacionais onde mais se concentravam pessoas com ensino superior ou com uma cultura acima da média, que começou a germinar a minha vontade de fazer das palavras escritas um uso para além da obrigação de alguma carta familiar. Sem Santa Maria, sobretudo sem o seu Externato, eu teria ficado pela 4.ª classe, tal como todos os rapazes que nasceram na Maia, em São Miguel, no mesmo ano que eu. Por um desses acasos que são difíceis de explicar, cresci logo nos primeiros anos de vida com uma curiosidade sem limites. Um dia, ainda antes de completar seis anos, perguntei a meu pai como é que se faziam versos. Ele era um improvisador de quadras e de histórias como poucos conheci na vida. Chegou a fazer o negócio de uma burra cantando ao desafio. E, nos intervalos do almoço, contava casos a homens da sua idade, mas tão interessados como crianças. Vi muitos filmes pelos seus olhos, ou ouvi-os da sua boca. Ele levou a sério a minha pergunta sobre poesia, e respondeu como se deve sempre responder a uma criança: dizendo a verdade das coisas como se se falasse ao adulto que a criança será um dia. Logo a seguir exercitei o meu novo conhecimento cantando para uma vizinha da minha idade, de que só guardo a memória de uns longos caracóis loiros. Sei que começava assim, esse que foi em rigor o meu primeiro poema: “Sou Daniel/ da ilha de São Miguel”.
Era, sim, com a sorte de ser da Ilha-Mãe também. E nela vivia então um poeta que fez parte do meu imaginário, e de quem eu muito quis ser imitador: Lopes de Araújo. Não tive a sorte de ser seu aluno, mas a ânsia de alcançar um estatuto semelhante ao seu foi talvez o maior impulso que me levou a dedicar-me à escrita.
Mas Santa Maria veio a ser para mim cenário de drama também. Numa certa manhã, os responsáveis pela Direcção do Serviço de Obras estavam reunidos para despedir pessoal. O critério escolhido foi o de optar pelos trabalhadores com menos filhos. O nome do meu pai foi um dos primeiros a serem falados, porque éramos só minha irmã e eu. Minha irmã não estudara porque as propinas equivaliam a um terço do ordenado de meu pai. Que levou um ano a decidir se eu deveria frequentar ou não o Externato. Acabou por resolver-se pela positiva, e eu revi a gramática da 4.ª classe, feita um ano antes, estudando-a enquanto vigiava as vacas. Valeu-nos que nunca paguei propinas no colégio, como chamávamos ao Externato.
O Miguel Corte-Real, esse homem da linhagem dos primeiros povoadores e a quem Santa Maria muito deve, não concordou com a ideia, alegando que eu estudava, e que meu pai e minha mãe, costureira, se sacrificavam a trabalhar mais do que podiam para eu ter aquele privilégio. Estava a questão por decidir quando chegou um funcionário com uma notícia dramaticamente irónica. Meu pai acabara de deixar vago definitivamente o seu lugar na vida.
Considero-me um privilegiado quando me chamam mariense. Porque, como filho destas ilhas, tenho a sorte de ter pai e mãe. Foi meu pai São Miguel, minha mãe, Santa Maria. E, se pode ter-se dupla nacionalidade, por certo que poderá ter-se dupla “insularidade”.
Sou mariense, sim, e julgo que de pleno direito. Cagarro e santaneiro. O que foi outro privilégio, ter vivido em Santana. Mais de oito anos, depois de quatro por São Pedro, na casa do Sr. Armando Monteiro, e seis meses na Ribeira do Engenho, numa casinha que era toda ao pé da porta e tinha o telhado à altura do caminho.
De São Miguel saí ainda de cabelos compridos, de que guardo uma vaga memória mas somente do dia em que mos cortaram, já em São Pedro. Antes disso, e da ilha onde fui gerado e onde nasci, só sei o que me contava minha mãe. Tempo esse em que uma criança de dois anos podia andar pelas ruas e ir até longe, no longe relativo do tamanho do corpo, sem deixar preocupado quem quer que fosse. Palmo e meio de pernas bastava para fugir facilmente das rodas de uma carroça ou de um carro de bois.
Muito cedo comecei a ser aluno da vida, em Santa Maria. Que belas lições recebi! Recordo a sabedoria de um povo a quem vi cavar um poço antes do tempo da sede. Aprendi a sua bondade em coisas tão simples como aquelas grandes pedras, postas ao alto à semelhança de pequenos menires, onde o gado ia roçar-se placidamente. A minha definição como pessoa começou a fazer-se com estes e com outros ensinamentos casuais ou espontâneos, sem pedagogia diplomada.
Pode parecer um contra-senso considerar um privilégio ter vivido em Santana, porque aquela era uma das aldeias mais rurais de Portugal. Nem havia sequer uma canada razoável que lhe fosse caminho. A que existia servia, em parte, como leito de uma ribeira, onde aflorava a rocha irregular posta a descoberto pela erosão. Durante séculos, foi a única via que levava a Vila do Porto. Maior isolamento do que aquele é difícil de imaginar. Ainda assim, em Santana nasceram e viveram pessoas de grande valor humano e social. Prodígios da superação.
De súbito, tudo mudou em 1945. Em Santana propriamente não, porque ela ficou imutável na sua rústica ancestralidade. Mas, mesmo ali ao lado, fora feito um aeroporto para ser um dos melhores e mais concorridos do Mundo. A Vila deixou de ser a principal referência, porque até na religião os de Santana se tornaram como que paroquianos da capela de Nossa Senhora do Ar, que antes fora lugar de culto de protestantes, católicos e judeus. Ia-se e vinha-se usando atalhos desenhados por milhões de passadas, cortados aqui e ali por muros que era preciso saltar. A aldeia isolada ficara a poucos minutos de um mundo novo e impensável. Mas aquela gente recebeu-o quase com a mesma naturalidade com que via nascer o Sol todos os dias, o Sol que gretava o solo árido no Verão, depois de secos os lameiros do Inverno. Aquela gente, que resistira à angústia da fome, numa penúria humilhante e indigna da condição humana. Como um pouco por toda a ilha, aliás. Mas que manteve uma dignidade bíblica, porque a dignidade é um estado de espírito mais do que uma afirmação social.
A nossa casa nunca fora chamada casa antes de lá morarmos. E, nesse tempo, era um absurdo pensar que quem tivesse menos de dezasseis anos não podia trabalhar. Não o proibia a lei, e a isso obrigava a necessidade de as mães não terem falta do que pôr na mesa à hora de comer. Apesar disso, não lamento nada da minha infância.
Fui pastor de cabras, de ovelhas e de vacas. Cavalguei em pêlo e sem esporas nem freio, como os índios. Nunca ninguém me ensinou a ter medo do dia nem da noite. Fui cowboy ou índio na mata de Monserrate e nas do Aeroporto. Mas não estraguei nenhuma árvore, nem os meus companheiros de aventuras. Contei histórias ao meu amigo Elias, e contava-me ele outra por cada uma das minhas. Matávamos o menor número possível de personagens, quer fossem índios ou bandidos. Apenas o essencial para haver vencedores e vencidos.
Entretanto, ia aprendendo em livros ou num quadro preto. Primeiro na escola de Santana. Com a D. Eduarda na 1ª classe, a D. Doroteia, na 2.ª, a D. Úrsula, na 3.ª, a D. Francisca, na 4.ª. Continuam a ser das minhas heroínas preferidas. Fizeram o milagre de me ensinar a ler, de explicar que povo somos e a que terra pertencemos. Depois veio o Externato. Juntei à minha lista de heróis e de heroínas mais uns quantos predestinados para o bem e a sabedoria. Passei a pertencer também à geração do Cavaleiro Andante, sem dúvida a mais prodigiosa publicação juvenil que houve em Portugal. Não tínhamos dinheiro para livros nem revistas, por isso era o José Guilherme Correia que mo emprestava sempre. E alguns livros também, como o José Vieira Souto Martins, um amigo de que nada sei há meio século. Foi assim que pude ler Emílio Salgari, Mark Twain ou Enid Blyton.
E havia o Clube Asas do Atlântico. O Asas! Nunca ninguém me pôs na rua nem mostrou desagrado pela minha presença. Nem imaginavam o bem que me estavam fazendo. Ali ouvíamos os relatos do futebol e do hóquei das nossas alegrias patrióticas. E era onde eu tinha à disposição os principais jornais que se publicavam em Portugal. Um dos mais bem escritos era A Bola, e por isso, ao mesmo tempo que a rivalidade entre o Sporting e o Benfica era um dos principais factores de unidade dos Portugueses, o desporto, contado naquele jornal que mudou tanto que se pode considerar extinto, era também uma lição de cultura.
Não longe, o campo dos jogos épicos do futebol romântico de dois defesas, três médios e cinco avançados. Com o mítico Badjana a dar os últimos pontapés na bola, jogando pela equipa da Direcção do Serviço de Obras, onde meu pai trabalhava. Depois veio outro clube, o de Gonçalo Velho, para o qual minha mãe e minha irmã bordaram os primeiros emblemas.
No entanto, a alegria suprema tinha lugar reservado no Atlântida Cine. O seu porteiro deixava muitas vezes as crianças entrarem sem pagar bilhete. Por isso o Sr. Cardoso faz parte da minha lista de heróis particulares. E o grito “ó Cardoso, apaga a luz” ainda ecoa nas minhas recordações como o anúncio de todas as claridades. Outro benfeitor de homens a haver.
Na capela de Nossa Senhora do Ar aprendi o lado mais humano da vida. Aquele que pensa acima de tudo no que nos distingue dos irracionais. E, se é certo que sem uma fé sobrenatural se pode ser boa pessoa, o cristianismo à maneira do Padre Artur é o testemunho do bem na Terra.
Mas qualquer pedaço de mundo vale pelo que vale a sua gente. A do meu tempo era feita destas e de outras figuras que marcaram o modo de ser de um tempo e de uma geração em que havia na ilha mais forasteiros do que naturais dela. Sorte nossa que a maior parte dos que em Santa Maria buscaram um pouco mais de fortuna ou um pouco menos de infortúnio eram pessoas de deixar saudades. Por isso o reencontro com velhos pioneiros dos tempos modernos da Ilha de Gonçalo Velho é sempre um momento de festa que dificilmente tem semelhança quando as amizades foram feitas por outras bandas.
O próprio aeroporto, começado a construir durante a guerra, acabou por ser um lugar de passagem para a paz. Se, em 1918, Franklin Delano Roosevelt escolheu Ponta Delgada para apoio ao transporte de tropas a caminho da Europa, por aquelas pistas passaram sobretudo soldados de regresso a casa. O nome de código da operação, “Green Project”, era ele mesmo uma declaração de esperança numa nova era.
Foi neste ambiente, um dos espaços nacionais onde mais se concentravam pessoas com ensino superior ou com uma cultura acima da média, que começou a germinar a minha vontade de fazer das palavras escritas um uso para além da obrigação de alguma carta familiar. Sem Santa Maria, sobretudo sem o seu Externato, eu teria ficado pela 4.ª classe, tal como todos os rapazes que nasceram na Maia, em São Miguel, no mesmo ano que eu. Por um desses acasos que são difíceis de explicar, cresci logo nos primeiros anos de vida com uma curiosidade sem limites. Um dia, ainda antes de completar seis anos, perguntei a meu pai como é que se faziam versos. Ele era um improvisador de quadras e de histórias como poucos conheci na vida. Chegou a fazer o negócio de uma burra cantando ao desafio. E, nos intervalos do almoço, contava casos a homens da sua idade, mas tão interessados como crianças. Vi muitos filmes pelos seus olhos, ou ouvi-os da sua boca. Ele levou a sério a minha pergunta sobre poesia, e respondeu como se deve sempre responder a uma criança: dizendo a verdade das coisas como se se falasse ao adulto que a criança será um dia. Logo a seguir exercitei o meu novo conhecimento cantando para uma vizinha da minha idade, de que só guardo a memória de uns longos caracóis loiros. Sei que começava assim, esse que foi em rigor o meu primeiro poema: “Sou Daniel/ da ilha de São Miguel”.
Era, sim, com a sorte de ser da Ilha-Mãe também. E nela vivia então um poeta que fez parte do meu imaginário, e de quem eu muito quis ser imitador: Lopes de Araújo. Não tive a sorte de ser seu aluno, mas a ânsia de alcançar um estatuto semelhante ao seu foi talvez o maior impulso que me levou a dedicar-me à escrita.
Mas Santa Maria veio a ser para mim cenário de drama também. Numa certa manhã, os responsáveis pela Direcção do Serviço de Obras estavam reunidos para despedir pessoal. O critério escolhido foi o de optar pelos trabalhadores com menos filhos. O nome do meu pai foi um dos primeiros a serem falados, porque éramos só minha irmã e eu. Minha irmã não estudara porque as propinas equivaliam a um terço do ordenado de meu pai. Que levou um ano a decidir se eu deveria frequentar ou não o Externato. Acabou por resolver-se pela positiva, e eu revi a gramática da 4.ª classe, feita um ano antes, estudando-a enquanto vigiava as vacas. Valeu-nos que nunca paguei propinas no colégio, como chamávamos ao Externato.
O Miguel Corte-Real, esse homem da linhagem dos primeiros povoadores e a quem Santa Maria muito deve, não concordou com a ideia, alegando que eu estudava, e que meu pai e minha mãe, costureira, se sacrificavam a trabalhar mais do que podiam para eu ter aquele privilégio. Estava a questão por decidir quando chegou um funcionário com uma notícia dramaticamente irónica. Meu pai acabara de deixar vago definitivamente o seu lugar na vida.
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