30 de abril de 2007

Registos ou a memória que se perde


Nº. de Ordem 23, 24 de Maio de 1945
«A todos os agentes de ensino«Circular. Serviço da República. Passando no próximo dia 28 mais um aniversário da Revolução Nacional, vem esta Delegação recordar que, embora não seja feriado nacional, dentro da mecânica própria do trabalho escolar do dia, não deixem os Senhores Agentes de ensino de aproveitar a ocasião para avivar e vincar bem no espírito dos seus alunos tam gloriosa data e os benefícios que nos trouxe o Estado Novo. A Bem da Nação. O Delegado Escolar. Geraldo Soares Coutinho Cabral.»
Nº. de Ordem 40, 14 de Fevereiro de 1946
«Exmo. Sr. Director Escolar«Serviço da República. Informo V. Ex.ª que chegou a meu conhecimento que a Regente da escola mixta da Calheta Senhora D. Maria da Conceição Santos Medeiros, costuma entrar tarde para a escola, que sai antes da hora legal e que alguns dias não tem dado aulas. Creio, que o que a tem levado a isso é um namoro que tem com um americano com quem costuma passear, namoro para o qual me chamaram a atenção por se estar transformando em escandaloso. Informaram-me, também, que esse americano entrava na escola. A Bem da Nação. O delegado Escolar. Geraldo Soares Coutinho Cabral.»

Nº. de Ordem 77, 18 de Janeiro de 1949
«Exmo. Director Escolar do Distrito de Ponta Delgada«S. R. Tenho a honra de informar V. Ex.ª que domingo último, se realizou no salão da Câmara Municipal, depois da última missa paroquial, nova palestra à cerca da necessidade da fundação da cantina escolar das escolas desta Vila, como V. Ex.ª dispôs. Encontravam-se na sala 61 pessoas. Presidiu à sessão o Sr. Dr. Portugal secretariado pelo Exmo. Presidente da Câmara e Professora Maria de Jesus Tomaz. Lembro-me ter visto na sala, entre outras pessoas, os Srs. Dr. Jaime Osório, Armando Monteiro, Abílio Botelho, António Pacheco Medeiros, Laureano Monteiro, João Botelho das Fontes e as Sras. Dr. Portugal, D. Leonor Arruda, D. Ferlanda e D. Salete Faria Gastão, etc. Em nome de V. Ex.ª e intrepretando o seu desejo expus à assistência a finalidade da reunião, dando em seguida a palavra ao conferente Sr. Professor Manuel de Barros. Este saudou a assistência, congratulou-se pela honra que lhe dava a presidência dum intelectual e deu em seguida começo à palestra cujo tema versou a Organização Corporativa e seu consequente valor quando aplicada às almas em flor que são as crianças, apelando para a generosidade de todos, esperando que o espírito associativo desabroche neste meio. Foi muito aplaudido, pois as suas palavras caíram profundamente no espírito dos assistentes. Pena foi não se ter registado maior número de pessoas. No final agradeci ao Sr. Professor Manuel de Barros em nome de V. Ex.ª a sua brilhante lição. A Bem da Nação. O Delegado Escolar. Geraldo Soares Coutinho Cabral.»

Nº. de Ordem 144, 8 de Junho de 1949
«Exmo. Sr. Director Escolar«S. R. Informo V. Ex.ª que deu entrada, hoje, nesta Delegação Escolar, a informação do teor seguinte: Exmo. Senhor Delegado Escolar do Concelho de Vila do Porto. Manuel Ventura de Loura, casado, residente na freguesia de Santo Espírito, concelho de Vila do Porto, participa a V. Ex.ª que tendo um filho de nome Osvaldo João Monteiro Loura, frequentando a escola masculina de Santo Espírito, onde é directora de ensino a Senhora D. Urânia, esta senhora não sei porque motivo, nos dias 5 e 6 do corrente mês, deu muitas pancadas com uma régua na cabeça do referido meu filho, ficando ele com inchações e nódoas negras a ponto de ir para a cama com bastantes dores. São testemunhas quase todos os alunos da mesma escola. Peço a V. Ex.ª se digne providenciar no sentido de não se repetir semelhante abuso e dar conhecimento ao Exmo. Senhor Director Escolar. A Bem da Nação. Freguesia de Santo Espírito, 8 de Junho de 1949. Manuel Ventura de Loura. (Segue o reconhecimento da assinatura). Informo também V. Ex.ª que oficiei à respectiva regente D. Urânia Maria Dias logo que recebi a informação, ordenando-lhe que não volte a espancar os seus alunos. A Bem da Nação. O Delegado Escolar Geraldo Soares Coutinho Cabral.»

Bom dia!

Há cerca de uns onze anos chega-me a Ângela a casa agarrada a três enormes livros, velhos com ar de terem sido encontrados na lixeira Municipal. “onde foste tu buscar isso? Já há lixo cá em casa que baste e vem esta rapariga carregada com mais…Não basta os gatos que acarta agora é livros velhos” Mas a Ângela parecia que trazia ao colo um cofre recheado de jóias e com o nariz empinado que sempre teve passou por mim e foi enfiar-se no quarto. À noite, não sei se desse dia, se do seguinte estivemos a ver os livros que estavam húmidos e bafientos. Explicou a Ângela que os encontrou na escola onde tinha feito a Pré-escolar, aquela frente ao Bairro de Santo Espírito e que havia lá mais. Folheámos os livros e eu vi que eram registos escolares, com informação muito interessante e fiquei curiosa em ver o que mais haveria lá na escola, por um lado, por outro espantada como livros desses estavam assim à mercê de qualquer um. Lembrava-me de ter passado à frente da escola, ou do que restava dela e ver vidros partidos, telhado aberto e mais me inquietou a situação. Combinamos lá ir no dia seguinte mas choveu torrencialmente e quando lá fomos o que vi deixou-me perplexa e triste, um monte de papelada, livros desfeitos, tudo ensopado. Já não havia nada a fazer, nada havia que pudesse, ainda, ser resgatado. Comentei com uma das professoras que me disse que não havia espaço na Escola do Aeroporto para guardar essas coisas.

Conclusão: parte da história de Santa Maria foi destruída quando aquela escola foi desactivada. Arquivos que foram considerados menores mas onde constavam episódios histórico, desaparecerams. Mas, não pensemos que o desaparecimento de documentos históricos se limita a estes; a história da Aeronáutica em Santa Maria está a desaparecer. Para além dos equipamentos antigos que já foram para o Museu da Ana em Lisboa tudo o que ficou em Santa Maria está, em grande parte, armazenado em condições deficientes e, creio, muita coisa já apodreceu, do que não foi vendido para a sucata. A fábrica da telha está no estado em que está, nem sei se as máquinas, os moldes que há poucos anos estava em estado de conservação razoável ainda lá estão. Só não roubou quem não quiz e como o telhado quase já não existe provávelmente o que resta estará a apodrecer. Se olharmos à nossa volta encontraremos muitos mais exemplos do que considero incúria, desleixo, falta de sensibilidade para a preservação do que temos e nos torna diferentes, únicos.
Daqui a nada somos uma ilha sem memória. Um povo sem passado é um povo sem futuro.
Estes e outros registos em http://www.registos-santamaria.blogspot.com/

Abraços marienses
Árvore, 30 de Abril de 2007
Ana Loura

Ah, só mais uma coisa, tem estado em S Miguel um grupo de cerca de 200 holandesas ligadas a agências de Turismo a quem o nosso Governo Regional terá pago parte ou a totalidade da deslocação, estadia, cocktails e passeios pelas três ilhas mais desenvolvidas dos Açores numa arrojadíssima campanha turística. O Governo compromete-se a subsidiar a vinda de turistas holandeses às ilhas de S. Miguel e Terceira se os agentes de turismo conseguirem uma ocupação dos voos acima de determinada percentagem. A vinda de turistas de alguns países do norte da Europa é já subsidiada...para a ilha de S Miguel. Com o dinheiro de todos nós. Não há coesão nem Ilhas de Valor que nos valha, ficamos sempre fora da carroça a ver os navios passar…

22 de abril de 2007

O avanço da Direita- Fascismo nunca mais

"Espreitar Abril" de Ana Loura (click na foto)
Bom dia!

Acordai
acordai

homens que dormis

a embalar a dor

dos silêncios vis

vinde no clamor

das almas viris

arrancar a flor

que dorme na raíz


Acordai

acordai

raios e tufões

que dormis no ar

e nas multidões

vinde incendiar

de astros e canções

as pedras do mar

o mundo e os corações


Acordai

acendei

de almas e de sóis

este mar sem cais

nem luz de faróis

e acordai depois

das lutas finais

os nossos heróis

que dormem nos covais


Acordai!

Este poema é da autoria do grande poeta português José Gomes Ferreira e foi musicado pelo não menos grande músico Fernando Lopes Graça fazendo parte das suas chamadas Canções Heróicas


Lê-se no site do Instituto Camões: “As Canções Heróicas/ /Canções Regionais Portuguesas foram compostas musicalmente por Fernando Lopes-Graça e cantadas pelo Coro da Academia de Amadores de Música com Olga Prats ao piano.


São canções politicamente empenhadas que contribuíram para exaltar a liberdade e dar força a todos aqueles que lutavam contra o antigo regime. A primeira versão foi publicada, em 1946, sob o título de «Marchas, Danças e Canções – próprias para grupos vocais ou instrumentos populares». Foi apreendida pela Censura o que impediu que os poemas fossem ouvidos e cantados em espectáculos ou sessões públicas, como até então. Contudo, muitos resistentes continuaram a cantar as canções nos encontros clandestinos ou nos países onde se encontravam exilados. Em 1960, surge uma colecção, mais alargada, com o nome de «Canções Heróicas, Dramáticas, Bucólicas e Outras». A nova edição destinava-se a celebrar o 50º aniversário da implantação da República e foi divulgada com grandes precauções, num meio muito restrito de pessoas. Finalmente, a versão final ficou conhecida por «Canções Heróicas».


Ando há alguns dias a meditar no facto de, num concurso de uma das nossas estações de televisão ter havido uma larga maioria de espectadores que achou que Salazar será o Português mais famoso. Como é possível que alguém ache que um ditador que mandou que a “Censura” apreendesse a obra de Lopes Graça e de muitos mais grandes vultos da cultura nacional e estrangeira possa ser considerado grande português e ainda por cima o maior? Um homem que em nome de valores discutíveis mandou que se iniciasse uma Guerra Colonial que ceifou milhares de vidas de jovens portugueses e jovens dos países colonizado


Acho que sei como é possível.

- É possível porque nós de Esquerda somos Democratas e não lhes “partimos as pernas” no 25 de Abril nem quando eles incendiaram sedes de partidos de esquerda.

- É possível porque a direita avança paulatinamente e o Estado e os cidadãos permitimos esse avanço embora a Constituição votada democraticamente limite a actuação de organizações de Direita e Nazis.

- É possível pela mesma razão que é possível que um partido de extrema direita se ache no direito de, impunemente, colocar nas ruas de Lisboa um cartaz xenófobo, racista, onde manda para as terras de origem os estrangeiros e os oriundos dos tais países que colonizamos, mas não desenvolvemos, e seus descendentes;

- É possível pela mesma razão que nas Universidades os meninos direitinhas se achem no direito de mandarem bocas ofensivas e perseguirem em atitudes provocatórias e arrogantes estudantes de esquerda e incluam na sua lista concorrente à Direcção de uma associação de estudantes alguém condenado por envolvimento no assassinato de um jovem preto;

- É possível porque ainda não se fez História e os nossos jovens não sabem o que foi o Fascismo pois nasceram em Liberdade e pensam que muitas das coisas que se dizem sobre ele não passam de fábulas e pouco mais são do que a saia medida a palmo à entrada do liceu, os recreios separados, o não podermos parar nos corredores a falarmos com os do outro sexo, e desconhecem que jovens se suicidaram, como o meu amigo Barnabé porque era Anarquista e não aguentou a pressão da presença constante do Pide nas ruas onde andava, à porta dos amigos que visitava como aconteceu à porta da minha casa quando me procurou para desabafar e lá estava o senhor agente dentro do carro a escassos metros de olho no jornal e outro em nós no cimo das escadas a conversarmos a medo;

- É possível, pois em vez de se proteger os desfavorecidos os agredidos se protegem os agressores e pasme-se com a notícia: “Chefe Neonazi está na cadeia com “uma atenção especial” Acrescente-se que este “senhor” é chefe do mais violento grupo da Extrema-direita portuguesa. Têm as autoridades medo que os pretos que estão na mesma cadeia “lhe cheguem a roupa ao pelo”…

Este jovem foi detido preventivamente em resultado de uma operação realizada pela polícia na sede do Partido Nacional Renovador, de extrema direita, onde foram encontrados 12 armas e explosivos entre eles "uma espingarda com calibre militar e que estava munida de mira telescópica"…seria para irem caçar pardais? De notícia publicada no Jornal de Notícias, edição de 21 de Abril de 2007, página 10

Urge fazer entender desde os jardins infantis o significado de Liberdade, o significado da sua ausência na sociedade, com exemplos, com depoimentos de quem viveu na ditadura. Esta geração está a desaparecer, deixará de ser possível, em breve, ouvir-se contar a História dos 48 anos do Fascismo em Portugal na primeira pessoa. Andamos nós preocupados se o nosso Primeiro tem canudo ou não…com assuntos tão sérios que nos deveriam, esses sim, tirar o sono e um deles e o avanço, quanto a mim, preocupante, das forças politicas da extrema-direita.

Que a frase “Fascismo nunca mais” seja, de facto, muito mais que uma frase, seja uma atitude.

Abraços marienses
Arvore, 23 de Abril de 2007
Ana Loura

16 de abril de 2007

Voltar? Sempre!








Bom dia!
Ser, estar, permanecer, ficar. Voltar?

Sim, voltar sempre e mais uma vez e para sempre

Domingo, dia 15 de Abril de 2007. Faltam pouco mais de 24 horas para eu voltar, mais uma vez, costas à minha casa. Cada vez me custa mais fazê-lo, de cada vez vou mais triste. Da última vez que fui embora encontrei uma forma de me convencer de que, não sendo um ser humano feliz, não sou plenamente infeliz, quem o é,? e que cada momento de bem estar, de felicidade é contabilizado a meu favor e que cada oportunidade que arranjo para cá estar deve de ser aproveitada até ao último minuto. O certo é que o não estar cá não me faz infeliz…costumo dizer que quando chego lá e engreno no meu dia a dia e não penso muito, não me lembro do que ficou aqui e, até sou de alguma forma feliz. Estar lá tem coisas muito boas, estou todos os dias com os meus velhos, olho para eles, ouço-os, faço-lhes um pouco de companhia e esses momentos fazem-me, por momentos, feliz; o facto do meu filho estar a gostar do que estuda e estar a ter resultados cada vez mais positivos concretizam os objectivos que me levaram a ir para o continente. Mas quando estou cá e penso que tenho que deixar a casa, os meus bichos, que na minha ausência são muito bem tratados por quem me faz esse impagável favor, os caminhos que gosto de percorrer, as pessoas que gosto de encontrar, abraçar, a quem gosto de levantar a mão em jeito de saudação quando nos cruzamos nas estradas, caio em tristeza profunda, em choro de Madalena Arrependida. Quando me perguntam se já me arrependi mentiria se respondesse que não, mas creio que também minto se assim em absoluto disser que sim. Estranha a alma humana quando não sabe o que quer sabendo o que não quer.

Mas chega de lágrimas, falemos de outras coisas a ver se animamos:

Pois comi umas sopas de Império que me souberam pela vida de tão boas que estavam. Tem razão quem está a pensar que ainda não é época de Impérios, que mal saímos da Páscoa, que ainda faltam os pouco menos de cinquenta dias que a separam do Pentecostes. Mas mesmo assim eu comi as sopas e pela simples razão de que ainda há quem abrace causas, quem trabalhe para a comunidade, quem saiba o que quer dizer ter causas comuns. Um grupo de pessoas juntou-se e preparou as sopas para quem quisesse comesse e pagasse apenas cinco Euros que reverteriam para obras de beneficiação na Paróquia de Santo Espírito. Ora eu juntei o útil ao agradável, comi umas saborosas sopas, eu adoro sopas, comprei um saquito de rifas que me rendeu uma chávena para eu tomar o meu café na casa de Árvore e contribui para uma causa nobre: as obras da lindíssima igreja de Santo Espírito

Na minha crónica de 18 de Novembro de 2005 dizia eu a propósito de um jantar organizado no ASAS para angariação de fundos para o futuro Centro paroquial de Santa Maria:

“...os talentos que temos e fazemos render em prol da Comunidade que somos, uns catequistas, outros cantores, outros ministros da Comunhão, os que passam a toalha do altar e varrem a igreja e ainda os que cozinham, lavam louça e preparam as salas onde se realizam estas coisas. A comunidade faz-se de participação, dos talentos que somos chamados a desenvolver nela. Só participando naquilo para que somos chamados cumprimos a nossa vocação comunitária. “

Acrescento: claro, que quem não participa, normalmente diz mal do que os outros fazem, mas com esses, os que participamos, contribuímos, podemos nós bem e acabamos por sorrir.

Santa Maria tem gente muito válida, que sabe arregaçar mangas e trabalhar. Haja quem dinamize.

Abraços marienses
Santa Maria, no dia em que mais uma vez parto, 16 de Abril de 2007
Ana Loura

PS: Obrigada a todas e todos que me fizeram sentir bem vinda e em casa. Bem-hajam

6 de abril de 2007

Ainda Dias de Melo, para a Sara Reis Melo, sua neta

Para a Sara, com carinho
No dia em que conheci o teu Pai, acabava eu de chegar a Santa Maria, o Sardinha colega meu ao passarmos por onde trabalhava a tua Mãe e vendo que o teu Pai lá estava puxou-me pelo braço, abriu a porta e disse:
- Quero apresentar-te a Ana que está apaixonada pelo teu Pai. Quase morri de vergonha, mas a verdade é que eu estava, mesmo, apaixonada pela escrita de Dias de Melo.
E porque nada do que eu tenha dito é suficiente, deixo-vos o texto que o Jornal Açoriano Oriental editou na sua edição de 1 de Setembro de 1996. Nessa época o Açoriano editava "crónicas" de Dias de Melo "Fumo do meu cachimbo". Guardei algumas e um destes dias ao remexer numa das caixas onde guardo "tralha" acumulada do meu gabinete de trabalho na NAV, era eu na altura "Chefa" como diria o meu querido Dinis, MCA do PDLMNA, encontrei esta:

Graças ao José Chíchero - III

"Pois deste jeito me tratava e falava o José Chíchero e se, para nós, era uma pessoa de família, para ele éramos nós igualmente pessoas da família dele, os nossos trabalhos eram trabalhos dele, os nossos cuidados eram cuidados dele, e naquele dia, de manhãzinha, mal acabava de luzir o buraco embarbaçado, enfarruscado, negro que nem um tição, com águas caindo a potes, não me lembro, penso mesmo que caía neve, aparece-nos em casa, entra-nos pela porta da cozinha dentro ensacado em roupas já encharcadas, por cima de tudo um alvacoto velho, esverdeado, não lhe conheci outro, na cabeça um boné ensebado enfiado até às orelhas, por sobre o boné o capuz de um saco de serapilheira caindo-lhe pelos ombros, pelas costas, nos pés, com meias grossas, cinzentas, de lã de ovelha, trabalho da mulher, albarcas, ele é que as fazia, de coiro de baleia que ele curtia

Minha Mãe, curvada junto ao lar, ateava, soprando penosamente, o lume na lenha de faia e incenso ressumando humidade debaixo da chaleira na grelha de ferro, ia ferver água para o café do almoço, café de favas, cevada, milho, batata doce, secava no forno a batata doce picava-a antes miudinha, moía no moinho de mão do Mudo da Feiticeira, com uma pinga de leite, açúcar nem o cheirávamos, a não ser num dia de festa, tinha um gosto muito gostinho, vinha o leite dos Feitais, da vaca Calçada do Tio Jorge, o leite e pão com queijo, fabrico da Tia Maria Augusta, e almoçávamos café com leite e pão com queijo, por aí, a não ser quem criasse vaca de seu, poucos papavam um almoço destes, era um pedaço de pão ou bolo de milho, já se sabe, sem mais nada, só água do talhão, -assim minha Mãe ateava o lume curvada junto ao lar, meu Pai, no vão da janela tínhamos o lava-mãos, a bacia, a toalha, o sabonete, e meu Pai, já com a cara ensaboada, ia barbear-se em frente ao espelhinho encostado a um dos vidros, em cima, a meio, na travessa da vidraça de guilhotina, e encara José Chíchero naquele preparo.

- Que fazes aqui?! – pergunta surpreendido.
Lá fora, aquela chuva, aquela ventania, o vento era rijo também, aquele frio, quase tenho a certeza aquela neve que caía, e o José Chíchero, calmo, bonacheirão:
- Venho para ir apanhar os cocos – cocos ou inhames vem dar ao mesmo, e meu Pai, olhos a olharem, espantados, por trás da espuma do sabão da barba na cara, a gilete na mão parada no ar:
- Apanhar inhames?! Tas doido?! Com um tempo destes?!
- A matança do porco é tal dia, tá i a cair.
- Há-de-se marcar outro dia, a Guiomar e eu já pensámos nisso, até já falei com o meu cunhado Jorge e com o mê sogro.
O José Chíchero não queria saber.
- Matai o porco quando quiserdes. O dia tá marcado. Fostes vós que o marcastes. Nunca vi desmarcar o dia da matança do porco, mas vós haveis de fazer como entenderdes: Pela minha parte, cabe-me apanhar cocos. Pra esse dia os cocos têm que ser apanhados hoje, o mais tardar.
E hoje eu vou apanhar os cocos.

Não me lembro nem do dia em que isto foi, não sei se já o disse, se o disse está dito, se o não disse nestes ementes o digo, mas, ou já eu tinha saído da Escola, ou a matança do porco seria para o 31 de Janeiro e isto foi numa quinta- feira, porque me lembro, isso lembro, de que fui para o Magraçal apanhar inhames, apanhar ou cavar, vem dar no mesmo, com o José Chíchero, disso lembro-me foi há cinquenta anos, prà i, mais coisa menos coisa, mas lembro-me, lembro-me como se fosse hoje, como é que não me havia de lembrar? Não há trabalho de terra, sempre quero que vocês saibam, que eu não tenha feito, bem novinho comecei, a trabalhar na terra alguns dias apanhei que nunca mais poderei esquecer, três principalmente, este foi um deles, um dos três, os outros não vêm agora ao caso, deste é que estamos a falar e este é que vou contar, em poucas palavras se conta.
Vocês bem vêem, meu Pai não ia deixar que o José Chíchero fosse sozinho para o Magraçal apanhar inhames, meu Pai, por isso, não ia, não podia ir, então lá fui eu com ele. Minha Mãe entrouxou-me em roupa, tudo roupas de lã, velhas mas de lã, e lã grossa, menos as calças que eram de cotim Marianim, o melhor que o meu Pai vendia na nossa loja , grosso também, grosso e muito bom, e a camisa de fora, de flanela, também grossa, o mais, de lã eram as ceroulas e a camisa de dentro, eram de meu Pai, cabiam dois iguais a mim dentro delas, de lã de ovelha, da ovelha que o meu Avô José Luzia criava atrás da burra, as duas sueras por fora da camisa de flanela, minha avó Maria Francisca é que as tinha feito, de lã, de fazenda de lã americana aí para um oitavo de polegada de espessura, o alvacoto castanho por cima de tudo aquilo, mandara-mo da Calafona minha Tia Prudência, irmã de meu Pai (por cima de tudo, não: por cima de tudo era o capuz do saco de serapilheira que levava enfiado na cabeça, por sobre o boné surrado de casimira velha, o capuz igual ao do José Chíchero, levava-o para o imitar), e de lã eram as meias nos pés calçados de albarcas, de coiro de baleia, como as do José Chícharo, não, albarcas de enjarroba, é como quem diz de pneu de automóvel, não havia automóvel por aqui, como que os havíamos de ter com aqueles caminhos de mil diabos, os pneus vinham de fora, mercavam-nos em S. Miguel, no verão, os homens dos iates, do “Andorinha”, do “Ribeirense”, compravam-nos, traziam-nos, vendiam-nos, vinham sem préstimo, prestavam para solas de sapatos e albarcas, de pala ou de bico, aquelas albarcas de bico fora o José Chíchero que mas fizera.”
E assim graças ao José Chíchero José Dias de Melo teve albarcas de bico com sola de enjorraba uma valente tareia e a roupa ensopada. Uma delícia a escrita deste picaroto, açoriano...do Mundo
Abraços marienses
Santa Maria, 9 de Abril de 2007
Ana Loura

2 de abril de 2007

Vida vivida em terras de Baleeiros- Dias de Melo




Fotos retiradas do trabalho de Sidónio Bettencourt Baleeiros em terra
Bom dia!

Há quase 27 anos, quando cheguei ao Faial para “dar aulas” na Escola Secundária Manuel de Arriaga, a minha ignorância sobre a cultura açoriana (este conceito é discutível e discutido e a minha opinião sobre ele é que de facto existem particularidades na cultura nos e dos Açores que o justificam), como dizia, a minha ignorância só não era total porque conhecia dos ecrãs da RTP o escritor Vitorino Nemésio. Os primeiros livros que li logo nos primeiros dias, ávida de conhecer, de saber o pensar, o viver das gentes da terra onde iria viver, pensava eu, pelo menos um ano lectivo, foram Mau tempo no Canal de Vitorino que me fez “íntima amiga” de Margarida Clark Dulmo e João Garcia. Ainda estava a lê-lo quando passei pela montra de uma livraria quase frente ao Amor da Pátria, vejo vários livros de autores açorianos e escolho dois ao acaso: O Barco e o Sonho de Manuel Ferreira e Mar Rubro de Dias de Melo. Para mim, este último foi paixão à primeira leitura, de tal forma que quando ainda ia a meio voltei à livraria para saber se havia mais livros do mesmo autor e comprei o Mar pela Proa.

José Dias de Melo, professor, nascido no Pico, escreveu a grande maioria da sua obra na casa do Alto da Rocha na Calheta do Nesquim, retratando a dura vida dos pescadores e baleeiros. São personagens dos seus livros pessoas de carne e osso como mestre José Faidoca, mestre Manuel Costa, mestre Machadinho e muitos outros homens da terra que a trabalhavam de sol a sol interrompendo esse trabalho ao rebentar de um foguete a anunciar “Baleia à vista”, abandonavam a enxada no meio do campo, passavam em casa onde a mulher, de minguo farnel numa mão e soera na outra os esperavam para a despedida apressada.

Diz o escritor na nota explicativa do seu livro Vida Vivida em Terra de Baleeiros que para escrever este livro (e passo a citar) “Fundamentalmente, utilizei o que trago comigo, desde menino dentro de mim acumulado – o que vivi, o que ouvi dos Velhos, baleeiros e não baleeiros, e o que me resta de quanto, com os baleeiros da minha Terra, companheiros e amigos de sempre, vivi, na própria carne, no alto mar, entre botes e baleias. De dentro de mim o tive que desenterrar: não é fácil e chega a ser doloroso”.

Dias de Melo, numa escrita que nos faz constantemente ver um filme de uma realidade espantosa que nos faz quase ouvir as vozes, os remos a entrarem na água, penetrar na espessa bruma que cobre o mar quando os ventos estão de feição, o cheiro do sangue das baleias, muitas vezes misturado com o sangue dos “homens que andam no ganha pão que o Diabo amassou…”. E acrescenta no prefácio de Vinde e Vede: “Ora, o objectivo que defini e, com o plano que elaborei, me proponho alcançar com este livro, não é outro senão o do meu compromisso com os homens que trabalham no que os bem instalados nem à mão de Deus Padre querem para si, e sofrem, humilhados, ofendidos, na terra e no mar, na cidade e no campo, aqui, além… No caso decorrente numa Ilha qualquer, de onde tantos são a bem dizer escorraçados, de onde partem para irem pelo mundo distante e pelas Ilhas próximas à procura de sorte melhor.
Eu penso que nunca o homem pôde – eu penso que hoje mais do que nunca o homem pode esquivar-se ao compromisso com o homem.
Sei que literatura é arte. Sei que ser escritor, da prosa ou do verso, é ser artista. Sei que é arte é vida. Sei que o escritor é homem.”
(…)
“Daí o objectivo que defini para este livro – e para todos os livros que tenho escrito:
Comprometer-me com o homem. Estar com o homem.
Mesmo conhecendo, ao lado do que nele existe de puro, generoso, bom, a carga enorme de maldade, inveja, mesquinhez, mentira, traição, ódio que lhe instala no ser o demónio, que encarcera, amordaça e agrilhoa o anjo que no seu coração habita – mesmo assim, há-de o escritor comprometer-se com o homem, estar com o homem. Humildemente, como quem sabe que é homem, como todos os homens e que traz consigo todas as virtudes e todas as mazelas, todos os anjos e todos os demónios de um homem qualquer.
E talvez o romance, o conto, a narrativa, a crónica, a istória que contenha a transposição para a prosa de ficção literária, a história do homem, sua, também, ajude um pouco o homem a compreender, discernir, ver as raízes dos seus males, da sua maldade, da sua escravidão – e as estradas e os companheiros da sua redenção e da sua libertação.
Por isso – eu me comprometo com o homem. Por isso – eu estou com o homem.
Na minha terra. No meu País. No mundo inteiro”

Victor Rui Dores diz de Dias de Melo em http://www.telus.net/eduardo-b-pinto/victordores_diasdemelo.html:
“Vinde, vede e lede Dias de Melo, escritor, 78 anos de idade e 50 de vida literária, homem solidário, solitário e fraterno, viciado na escrita e no cachimbo, picaroto da Calheta de Nesquim, baleeiro da literatura açoriana.
Do recolhido silêncio do Alto da Rocha do Canto da Baía, continua este autor a aguentar o rumo da escrita, num percurso literário cujo universo temático consubstancia à sua volta a distância, a ausência, o tempo, a saudade, o afecto, a solidão, o amor, o ódio, o sonho, o pesadelo, a vida e a morte no registo mais sentido de uma escrita pessoalíssima e profundamente humana.”

Diz Sidónio Bettencourt no seu excelente trabalho Baleeiros em terra:
“O escritor das baleias... na sua casa pequena, um balcão, uma árvore sombria, a velha máquina de escrever, uma referência a Abril, a liberdade... ele que escreveu imenso sobre os problemas sociais do povo da sua terra, a Calheta do Nesquim. São três e meia da tarde... está a escrever onde mais deseja: no alto da Rocha do Canto da Baía... uma quadra sua diz tudo da verdade com que pautou a sua vida literária:
«... Nestas paredes erguidasPelas mãos dos nossos avós As velhas pedras são vidas Que vivem dentro de nós...»
José Dias de Melo tem cumprido na íntegra este seu compromisso de se comprometer com o homem, de estar com o homem na vasta obra que está publicada e na sua forma de estar na vida como cidadão. Presto publicamente a minha homenagem a este escritor picaroto, açoriano, português… do mundo.

Só nos podemos dizer açorianos se, muito mais do que termos nascido cá, conhecermos a nossa cultura, o que se escreve, o que se canta, o que se pinta, o que se diz, o que se faz nas e pelas Ilhas e, principalmente o que se pensa.

Abraço mariense
Santa Maria, 2 de Abril de 2007
Ana Loura