Escrevo-te ao som e ao sabor de um biscoito de orelha. Escrevo a ti que nem sei se existes. Mais exactamente, escrevo-te enquanto roo um biscoito de orelha. Acho que sabes o que é um biscoito de orelha, a que sabe, qual o som que retine na tua cabeça quando mastigas um biscoito de orelha, e sabes a que sabe um biscoito de orelha quando o comemos em qualquer outra parte do mundo que não a ILHA. Gosto de falar contigo enquanto o como, aliás eu gosto de falar contigo desde que acordo até que me deito. Sim, eu sei que nem dás por isso pois estes nossos monólogos são tão silenciosos como os segredos que conto às migalhas do meu pão que depois como até à última. Mas eu já teria enlouquecido, será que ainda já não enlouqueci? se não tivesse estes meus monólogos contigo. Hoje, ai hoje, meu querido, já te contei tanta, mas tanta coisa. Contei-te que acordei sem ter dormido, que as horas da noite passaram penosamente lentas e que o meu acordar foi um não ter adormecido e durante essas horas a mesma pergunta sem qualquer resposta foi uma constante: será que tu, aquele que penso me acompanha as horas todas do dia existe? Ou não passas, apenas, de um desejo forte que existas, de uma necessidade premente de te ter do outro lado da mesa e falar-te enquanto como e te conto como foi o meu dia, como foi cada hora em que tenho esta saudade imensa do meu espaço do meu tempo na lha que é minha e ao mesmo tempo não o é. Mas hoje tenho uma coisa muito especial, não o serão todas? para te contar enquanto ambos trincamos um biscoito e enquanto os gatos partem uma garrafa de azeite que desagua no chão da cozinha e o Pedro limpa, do acordar sem ter dormido, como já te disse, fiquei a remoer, a “moer os meus joelhos entre o lodo a e areia enquanto a minha dor cantava de sereia” por não ter projectado um almoço para que os meus pais venham aqui. A minha Mãe adora ver os comboios passar, o metro que tão bem conheces, aqueles que têm a rodinha amarela onde é preciso carregar quando param para que a porta abra, e eu não pensei em nada para o almoço. Mentira! Pensei, sim. Ontem disse ao meu Pai que me apetecia comer peixe assado, mas de repente fiquei amorfa, não me apeteceu ir ao mercado do peixe comprá-lo. Até parece que adivinhava o mar que se iria alevantar ao fim do dia e a noite a cair do sono que não conseguiria dormir que despontava com a lua a nascer na janela do meu quarto. Meu? Será que o quarto onde por vezes durmo e muitas estremunho nos mesmos lençóis é meu?
(Quando penso no meu quarto ainda e sempre será o “meu mundo”. Eu digo: o meu mundo está dentro destas quatro paredes, tudo o que tenho e sou está aqui: os meus livros, os meus cds, as minhas coisinhas estão aqui. Adoro acordar aqui, nesta cama de tantos anos, e imagina tu a ironia da vida que passa a vida a prega-me partidas, agora até um milhafre esvoaça diante da janela que abro mal acordo, outro dia consegui fotografá-lo, mal, tal era a emoção pousado no topo de um poste quase em frente à tal janela do tal quarto onde não durmo faz, hoje, uma semana…tanto tempo. )
Ah, falava eu do almoço que acabei por cozinhar pois saí para comprar dois Gorazes de pinta (aqui diz-se de pinta os gorazes que pescas e têm uma rodinha escura nos opérculos) Assei-o no forno com batatas, preparei uma salada de tomate e uma salada de legumes e assim acabamos por conviver tendo por motivo imediato dois gorazes de pinta assados e uma garrafa de Frei Gigante. Mas o que te queria contar até nem era isto mas as nossas conversas, aliás os nossos monólogos são como as cerejas eu vou falando, falando silenciosamente e contando o que vai fluindo. Mas o ponto mais alto do dia aconteceu no final da Missa à qual fui, àquela, entenda-se porque para mim, de facto, não há Domingo sem Missa nem Segunda sem preguiça. Vi que uma das intenções da Missa das sete seria pela alma do Pai de uma amiga dos meus catorze anos, aliás já te falei dela. Lembras quando jantámos no Caximar, aquele restaurante que fica em cima das rochas da praia das Caxinas que te contei ter sido um bar feito de madeira onde eu e mais quatro amigas (As quatro cavaleiras do Apocalipse, as Beatles, como eram conhecidas por serem quatro, andarem sempre juntas e serem as fãs mais acérrimas dos Quatro de Liverpool) “devorávamos” livros, líamos, trocávamos ideias, impressões sobre eles, declamávamos na esplanada do bar ao sol do Verão, ao som do mar todas as tardes e depois do Verão se despedir aos fins de semana quando as “netas do chapeleiro” vinham da Aguda passar os fins de semana. Como eu cresci nesses dois anos! Nunca li tanto na minha vida, eu, uma menina de catorze anos, tivera a sorte de “cair” por acaso no meio de um grupo de moças muito mais velhas, ajuizadas, ambiciosas culturalmente. Li desde o meu querido Gedeão até Dostoiévski, passando por Régio, Gogol, Kafka, Stefan Zweig e Pessoa. A elas devo muito do que sou. A vida levou cada uma de nós, ou talvez tenhamos escolhido cada uma de nós o nosso destino, longe umas das outras, mas a mesma vida, ou nós, fazemos os reencontros e hoje, porque eu vi o tal anúncio da Missa do terceiro aniversário do falecimento do pai da Luísa eu escolhi a Missa das sete para festejar o Dia do Senhor. A Luísa já há muitos anos vive em França, mas hoje ao sair da igreja procurei na esperança, na improbabilidade de a encontrar (há três anos vi o anúncio da morte do pai da Luísa após o enterro e na Missa do Sétimo dia a Luísa já estava em França). Vi o irmão dela no meio de uma dúzia de pessoas e…Será ela? Parece ela…avanço e paro, amigas comuns olham-me e sorriem como quem, é ela, avança. Ela olha-me e eu: sou a Ana Maria, ela beija-me e diz ah, a Ana Maria. De repente grita: A ANA MARIA????? E caímos nos braços uma da outra lágrima a desaguar nas nossas caras como o azeite da garrafa que os gatos partiram há pouco no chão da cozinha e o Pedro limpou. Trocamos números de telemóveis e prometemos que um destes dias poremos conversas de quase quarenta anos em dia. Hoje é este o meu monólogo contigo que não estás desse lado a acompanhar-me enquanto escrevo o que irei ler amanhã na minha “Crónica do dia” e tu não irás ler porque contrariamente ao que a minha vaidade, a minha imodéstia esperam não irás, mais uma vez, ao Mulheres de Atenas. Imagina que hoje eu ia falar sobre a Globalização…mas são como as cerejas o que penso e te digo a ti que nem sei bem se existes nos nossos monólogos.
Dorme bem…Eu vou tentar.
Abraços
Árvore, 16 de Setembro de 2007
Ana Loura
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