28 de julho de 2008

Última crónica Ilha-Mãe

Prometo que irei colocar a capa do livro num tamanho "decente" mal chegue a casa
Bom dia!

A decisão que me foi anunciada informalmente na sexta, 19 de Julho, do fim das minhas crónicas não foi propriamente imprevista pois a Ana Paula já de há um ano a esta parte me dizia que a antiga direcção queria remodelar a grelha de programação e nela não haveria lugar para as minhas crónicas. O certo é que o me ter sido dado conhecimento assim a sangue frio no meio do Festival de Blues quando o convite para as fazer foi rodeado de certa formalidade, surpreendeu-me pois ainda não há nova grelha e ao que consta só haverá em Outubro. Mas fui instada a escrever a última e, com atraso por questões de doença para cumprir a data imposta, é isso que estou a fazer: a escrever a minha última crónica. Os argumentos para a cessação da realização das crónicas colhem, pois como se lembrarão e eu expliquei na primeira crónica lida no dia 01 de Março de 2004 o convite foi feito telefonicamente mas apesar da relutância da minha parte foi motivo de uma reunião com todos os convidados, na altura Nuno Barata, Emanuel Soares, Sérgio Ferreira, Nélia Figueiredo que não compareceu à reunião e acabou por ser substituída no projecto por José Humberto Chaves que desistiria passadas poucas semanas e eu para se definir o que seria a Crónica do Dia e “sortear” o dia de cada participante. O objectivo da “Crónica do dia” seria a apresentação por parte de cada um dos representantes de cada uma das formações políticas mais significativas em Santa Maria dos seus pontos de vista sobre a realidade mariense e regional. Pena que depois da desistência de José Humberto Chaves tenham, um a um, desistido os restantes cronistas e que no final de Junho de 2004 (as últimas crónicas publicadas por eles no Blogue “A Crónica do dia” têm data de 22 de Junho) apenas eu teimasse em honrar o compromisso. Nem sempre foi fácil e durante os dois anos de “ausência” no continente tornou-se particularmente difícil acompanhar o “pulsar da Ilha” pois cada vez que eu perguntava a alguém “E então, novidades?” a resposta era quase invariavelmente “O costume, nada” O certo é que eu passado uns dias vinha a saber que afinal tinha acontecido uma reunião internacional sobra a importância da Ilha durante a Segunda Guerra, que o livro Ilha-Mãe de Daniel de Sá tinha sido lançado e muitos outros eventos… Mas muitas vezes tive a angustiante experiência do vazio diante da “Folha em branco” do monitor do meu computador. Mas lá fui cumprindo e gravando a “Crónica do dia hoje com assinatura de Ana Loura” para agrado de alguns e o desagrado de outros, tendo estes sempre a hipótese de mudarem por 10 minutos de estação radiofónica para não terem de gramar uma coisa que na sua opinião “já ninguém pode ouvir, acabe com as crónicas” como alguém teve a coragem ou a lata de me dizer publicamente. Acontece que, chegado o dia da última crónica, tenho a certeza de que faltou dizer tanta coisa, tanto eu tinha ainda para partilhar. Mas quando nos dizem que é a última e nos dão a hipótese de nos despedirmos temos de escolher entre esses temas que gostaríamos de partilhar um que nos seja querido. E, nada mais querido do que a própria Ilha, Santa Maria Ilha-Mãe onde vivo, onde nunca, apesar da minha ausência deixei de viver “Porque Santa Maria é a ilha dos cheiros fortes, intensos, de tal maneira que não faria falta ver de olhos abertos para saber onde se estava. O próprio Raul Brandão deu por isso e chamou-lhe “a ilha que cheira bem”. E não eram só os cheiros das construções em que dominava a madeira, a chapa e o papelão. Eram sobretudo os aromas da terra amodorrada pelo calor. Do poejo, da macela, da murta, das giestas, das acácias, dos eucaliptos, dos pinheiros. Da vida.”…” O Terminal era o passeio dos pobres. O deslumbramento de ver oiros e pratas, relógios caros, gente estranha que chegava e partia falando quase todas as línguas do Mundo. Os elegantes Super Constellation da TWA, os sólidos DC6 da Pan American, o belo azul da KLM, as cores garridas da Guest Aerovias. E a VARIG, a Iberia, a Air France, a Avianca... O sonho ao alcance do olhar.”
“Não sei a razão que levou a criar-se a lenda, em que muita gente acredita, que estas ilhas foram povoadas pela escumalha do Reino. Fidalguia da melhor, a começar por Gonçalo Velho Cabral, comendador de Almourol, a quem se juntaram alguns familiares seus e outros de elevada estirpe.
Quanto aos supostos criminosos exilados, houve por exemplo uma menina de dez anos, duvidosamente acusada de ter matado uma criança! Aos grandes malfeitores destinava-se a forca, ou decepava-se-lhes algum membro ou parte dele; uns anos mais tarde, eram mandados para S. Tomé, o pior dos desterros. Estas penas eram consideradas tão rigorosas que os donatários, ou os capitães que os representavam, não tinham o direito de aplicá-las, apesar de lhes ser atribuído o poder de fazer justiça.
Entre os povoadores naturalmente que se contavam muitos pobres também, destinados a arrotear, lavrar, semear e colher, para que houvesse abundância para todos, como cedo começou a haver. Mas provavelmente terão sido aqui menos pobres do que eram no Reino.”
“Tenho saudade desses impérios, que têm quase a idade do povoamento da ilha. E que por isso mantêm a memória de uma receita culinária de antes da chegada das especiarias orientais. A carne, cortada em grandes pedaços, é temperada apenas com sal e cozida durante várias horas. Depois, com o caldo ainda meio fervendo, põe-se-lhe dentro hortelã e endro. E assim se faz a carne mais saborosa de quantas já provei até hoje! Será só saudade?”
“Uma das recordações mais fortes dos meus impérios de Santa Maria são os foliões. No aspecto, em pouco diferem dos companheiros da equipagem, com o lenço colorido à volta do pescoço. Um toca o tambor e outro os ferrinhos ou uns minúsculos címbalos, indo ao meio o porta-bandeira. Eles merecem todas as atenções, nada acontece sem a sua presença antes do dia da função e, durante esta, de manhã até à noite ouve-se aquela toada mourisca que vão como que ronronando sempre. De nada serve aclarar-lhes a voz de pouco a pouco com gemadas em vinho e açúcar, servidas numa tigela. É mesmo assim a tradição, só se percebe de quando em quando um “Senhor” ou um “imperador”, mas pouco mais. Nem é preciso. A presença da folia é fascinante. Eu era capaz de ficar horas seguidas a olhar para os três foliões, a ouvi-los sem os entender, e mesmo assim nunca me cansava.”
“Nesta ilha a paisagem é como que um resumo da geografia universal. Será difícil encontrar outro pedaço da Terra que, em menos de cem km2, seja tão variado.”
“Até as chaminés mais antigas não se erguem muito acima dos telhados. As redondas vão um pouco mais alto, na sua elegância de navio a vapor. E pensa-se que foram brasileiros de torna-viagem que, para a sua construção, se inspiraram nas chaminés dos transatlânticos que os traziam de novo à ilha. Por isso lhes chamam chaminés de vapor. Em Santana, no meu tempo, haveria apenas umas três ou quatro. O que quer dizer que todas as outras casas seriam provavelmente ainda do século XIX ou princípios do XX, mantendo as chaminés de mãos-postas, como que pedindo aos Céus a bênção para o lar, o forno e o fumeiro.
Essas chaminés “de vapor “ provocaram uma interpretação errada que ainda hoje persiste, mesmo entre pessoas cultas. Bastaria saber a época a que pertencem para se pôr de parte a apressada tese. Por causa da sua ligeira parecença com as do Algarve e do Alentejo, houve quem as visse como herança das gentes do Sul do Reino. Coincidência somente.”
” Esta praia merece que a felicidade a contemple. Tão bela é que Luís Teixeira lhe chamou “Plaia Hermosa, no castelhano arcaico que consta em todo o mapa que fez dos Açores em 1584.
Que ela é formosa percebe-se logo à primeira vista… Desde 1986 a Praia deixou de pertencer apenas aos marienses. O Festival Maré de Agosto transformou-a em património açoriano e nacional, tornou-a conhecida um pouco por quase todo o Mundo”

“A cor branca dessas casas arquitecturais sempre se deveu à cal da própria ilha, sendo os seu fornos uma presença frequente na paisagem. Mas o calcário e a abundância de fósseis marinhos provocaram nos visitantes apressados uma interpretação errada. Até em livros de estudo chegou a constar que Santa Maria não era de origem vulcânica como as outras ilhas dos Açores. Puro engano, como sabes. O que acontece é que ela é de formação muito mais antiga. A sua plataforma esteve submersa durante quatro milhões de anos.”
“Muita gente da que procurou uma vida decente em Santa Maria não conseguiu encontrá-la. E a riqueza que se passeava de um lado para o outro do Atlântico passou lá um dia mais opulenta ainda. 26 de Outubro de 1958. O primeiro voo intercontinental de um Boeing 707 da Pan American. Metade da ilha foi apreciar o colosso que vinha destronar os Clipper e os Constellation. Ficámos todos maravilhados. Ninguém se apercebeu de que o gigante a jacto anunciava o princípio do fim da importância da ilha como ponto de ligação entre dois mundos. Dos mais de treze mil habitantes, a maior parte dos que não eram de lá foram voltando para as suas terras. E foi igualmente o descalabro da emigração, até aos muito menos que seis mil de agora.”

Terminei as minhas crónicas (cerca de 200) da melhor forma, citando o livro “Santa Maria a Ilha-Mãe” do Escritor, de coração mariense como o meu, Daniel de Sá. A minha homenagem ao escritor de quem tanto gosto, à Ilha, aos homens que a descobriram, a povoaram, a construíram, cá vivem, a amam.

Foi um passo difícil de dar o ter começado a “cronicar” como digo do que escrevo, o “vício” ficou e certamente continuarei a escrever sobre a Ilha, a minha Ilha: Santa Maria, no meu blog Mulheres de Atenas criado, exactamente, para as guardar.

Forte abraço mariense a todos, aos que gostam e aos que não gostam de ouvir, mas mesmo assim me ouvem

Ponta Delgada, Rua do Calhau, 19

Ana Loura

17 de julho de 2008

Cão de carroça

Esta estóriazinha é dedicada ao JL que me contou o tema base há anos, à minha irmã Branca que protestou há dias por ter vindo aqui e não encontrar nada de novo e a uma pessoa de quem gosto MUITO e com quem partilho o que posso partilhar da minha vida. Adorei ter escrito estas linhas.


imagem tirada da net, uma carroça sem cão
Cão de carroça

Ainda se vêem pelas estradas de S. Miguel carroças puxadas por cavalos ou mulas onde pequenos lavradores (os grandes já utilizam tractores ou camiões) transportam as bilhas com o leite do pasto aos postos de recolha das fábricas. É raro não se verem por baixo das carroças caminhar pelo menos um cão de fila que de vez em quando sai do seu lugar para dar uma volta, alçar a perna contra uma das árvores da berma da estrada, cumprimentar o companheiro que guarda um dos pastos por onde passa ou apenas para passear sem ter como céu o fundo da carroça. São chamados Cães de carroça. Não consta que algum aquando das suas saídas higiénicas ou sociais não tenha voltado para debaixo da carroça que lhe servia de céu pelo que se construiu o mito de que “cão de carroça volta sempre”.

Contou-me um amigo há anos que um colega de trabalho dava as suas “facadinhas no casamento”, “pulava a cerca”, tinha os seus devaneios amorosos extra conjugais. A esposa traída, que acabava quase sempre por saber que “andava moira na costa” pois o marido “andava num sino”, a pentear o cabelo pela terceira vez pela manhã, a dar-lhe o segundo beijo de despedida com ar ausente e sorriso aparvalhado nessas alturas de paixão efémera mas infinita enquanto durava, dizia a quem lhe vinha bichanar, “na melhor das intenções” que fulano, amigo de sicrano tinha visto o infiel marido enlevado na companhia da ruiva flamejante ou da morena escultural no restaurante tal ou no bar da moda, ou quando no cabeleireiro a manicur entre limadela de unha e pincelada de verniz e a meia voz, o suficiente para que todo o salão ouvisse, comentava que aquela amiga do peito da esposa naquele mesmo dia de manhã tinha confidenciado à menina que chegava os rolos à outra menina que lhe fazia a mise que o marido da sua melhor amiga, e toda a gente sabia a quem ela se referia, estava na véspera naquele recanto da Praia do Pópulo de mãozinha dada com a cunhada do Dr. Antonino (nome fictício, claro). A esposa sorria e dizia: “o meu Armando (nome fictício, claro) é cão de carroça, dá as suas voltinhas mas volta sempre”. Um dia Armando não voltou! Encontrou outra “carroça”mais jovem, pele nacarada e macia, sorriso meigo, gargalhada espontânea sempre que ele contava uma tontice qualquer, a servir-lhe de céu estrelado e azul com cânticos de anjos acompanhados de harpas harmoniosas e sininhos celestiais, mesa farta de pitéus refinadíssimos e cascatas do melhor champagne francês. Diz quem sabe que Armando (nome fictício, claro) “esgalhava” ao volante do veículo que pilotava para que o dia de trabalho terminasse rápido e poder aninhar-se debaixo da sua nova carroça com um sorriso ainda aparvalhado mas feliz.

A esposa traída continuará à espera que se cumpra o mito e o seu "cão de carroça " volte. Espero que bem sentada numa boa almofada.