22 de dezembro de 2008

Régio ou o tinteiro


Fez hoje 39 anos que morreu José Maria dos Reis Pereira, nome de Baptismo do Poeta José Régio. Eu estava a estender roupa no quintal, como sempre o rádio lá de casa estava ligada no programa clássico da então Emissora Nacional, seriam umas onze horas da manhã, a notícia de abertura do noticiário foi a da morte do homem que deu corpo ao poeta, homem que eu via a passar em longas conversas com Orlando Taipa, a formiga e o elefante como eu carinhosamente chamava ao duo, Régio, pequeno, Orlando Taipa alto, entroncado. Caminhavam lado a lado no passeio do outro lado da rua onde esperávamos as camionetas Linhares que nos transportavam ao Liceu da Póvoa mesmo em frente ao Mercado Municipal. Caminhavam lentamente, sem pressas parando amiúde. Nessa altura o meu Pai tinha-me oferecido o livro As encruzilhadas de Deus pelo meu aniversário, ele sabia da minha admiração por Régio pois no meio do montinho de livros que eu trazia da Gulbenkiam havia um dos da Velha casa, ou Davam grandes Passeios ao Domingo. Não contive umas quantas lágrimas. Um dos meus poetas falecera. Nessa altura eu não sabia, ainda, que os poetas são imortais, ficam sempre ao alcance de um gesto na estante dos que amamos ou eternamente em cima da mesa de cabeceira no meio das coisas que amanhecem e anoitecem connosco, o Livro das Horas, a foto dos filhos, a carta de há muitos anos dos Pais, as recordações que a vida fez apenas serem-no e não temos a coragem de arquivar.

A minha família foi ao funeral de José Maria dos Reis Pereira, homem que deu corpo ao Poeta José Régio. Levámos, cada um de nós, na mão uma camélia. Estes dias de enfeites natalícios olhei os ramos de camélias que enfeitam os arranjos e parei muitas vezes a pensar: está a fazer anos que peguei numa camélia e fui no imenso cortejo que subiu a calçada que vai da Meia Laranja à Correcção. Apenas se ouvia a cadência dos passos nas pedras da calçada.

Muitas vezes subi as escadas do Monte para ir a casa da Luísa, amiga do grupo das leituras que também fizeram muito que eu seja o que e quem sou, parei quase sempre no Cemitério e muitas vezes me sentei na pedra tumular de Reis Pereira. Ficava ali minutos, apenas ficava e…pensava como quem conversava com o Poeta.

Hoje, 39 anos depois, mesmo fisicamente longe daquele cemitério eu fiquei lá e pensei como quem conversa com o Poeta. E estrofes, quer da Carta de Amor, quer de “Em cima da minha mesa” me acompanharam no dia e eu, sem muitas respostas ao que me inquieta penso mesmo que se não fosse a Fé e a Esperança eu já teria bebido o tal tinteiro de tinta. Mas eu sei que melhores dias virão, tenho a certeza.

De José Régio:

Em cima da minha mesa
Da minha mesa de estudo
Mesa da minha tristeza -
Em que de noite e de dia
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo...)
E me estudo
A mim
Também
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!

À cabeceira do leito,
Dentro de um caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora...
Ai minha Nossa Senhora,
Que se parece contigo,
E que tem ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que Tenho,
De menino pequenino!...

No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(Quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós...)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa...
Três maços - e nada leves!
- Atados com um retrós...

Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta...)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta.



Carta de Amor

Ouve-me!, se é que ainda
Me podes tolerar.
Neste papel rasgado
Das arestas da minh'alma,
Ai!, as absurdas intrigas
Que te quisera contar!
Ai os enredos,
Os medos,
E as lutas em que medito,
Quer dê, quer não dê por isso,
Sem descansar
Um momento...!
Quem sofre - pensa; e o tormento
Não é sofrer, é pensar.
O pensamento
Faz engolir o vómito de fel...
Ouve! se sou cruel
Neste papel queimado
Dos incêndios da minh'alma,
é de raiva de que embalde
Te procure dizer sem falsidade
Coisas que, ditas, já não são verdade...
E procuro eu dizê-las,
Ou procuro escondê-las?
E procuro eu dizer-tas,
Ou procuro a vaidade
De mas dizer, a mim, de modo que mas ouçam
Esses mesmos que desprezo,
E cujo louvor me é caro?
Não me acredites!
O que digo,
Antes ou depois, o peso;
E não!, não é a ti que me eu declaro!
Sei que me não entendes.
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
O fundo do meu mar,
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu (sendo, apesar de tudo, nosso)
Menos me entenderás,
Tu..., - a minha metade!
Por isso me não és senão vaidade,
Meu amor!, meu pretexto
Deste miserável texto...
Vês como sou?
Mas sou pior do que isto.
Sabe que, se me acuso,
é só por vício antigo
De me lamber as mãos e agatanhar o peito,
De me exibir a Cristo!
Sabe que a meu respeito
Vou além de quanto digo.
Sabe que os males que ora uso,
Como quem usa
Cabeleira ou dentadura,
São a pintura
Que esconde os mais verdadeiros,
De outro teor...
E sabe que sou pior!:
Sabe (se é que o não sabes)
Que ao teu amor por mim foi que ganhei amor.
Que a ti..., sei lá se te amo.
Sei que me deixam sozinho
Ante o girar dos mundos e dos séculos;
Sei que um deserto é o meu caminho;
Sei que o silêncio
Me há-de sepultar em vida;
Sei que o pavor, a noite, o frio,
Serão jardim da minha ermida;
Sei que tenho dó de mim...
Fica tu sabendo assim,
Querida!,
Porque te chamo.
Mas amar-te?!
Não!, minha vida.
Não! Reduziram-me a isto:
Só a mim amo.
Ama-me tu, se podes,
Sem procurar compreender-me:
Poderias julgar que me encontravas,
E seria eu perder-te e tu perder-me...
Ao menos tu..., desiste!
A sobre-humana prova que te peço,
A mais heróica!,
A mais inglória e a mais triste,
é essa..., - é este o meu preço.
Mais que o despeito, o ódio, a incompreensão
Dos por quem passei sereno,
Estendendo a mão afável
Ao frio, pérfido, amável
Aperto da sua mão,
Me punge,
Me pesa no coração,
O fruste amor dos que me interpretaram.
Ai!, bem quiseram amar-me!
Bem o tentaram.
Mas nunca me perdoaram
O não serem dominados
Nem poderem dominar-me...
E assim o nosso amor foi uma luta
De cobardes abraçados.
Entre eu e tu,
Tão profundo é o contrato
Que não pode haver disputa.
Não é pacto
Dum pobre aperto de mão:
Entre nós, - ou sim ou não.
Despi-me..., vê se me queres!
Despi-me com impudor,
Que é irmão do desespero.
Vê se me queres,
Sabendo que te não quero,
Nem te mereço,
Nem mereço ser amado
Pela pior
Das mulheres...
Poderás amar-me assim,
(Como explicar-me?!)
Por Qualquer Cousa que eu for,
Mas não por mim!, não a mim...!

Beijo-te os pés, meu amor.


Santa Maria, 22 de Dezembro de 2008


Ana Loura

2 comentários:

Anónimo disse...

Melhores dias estão sempre a vir, embora quase sempre escondidos.

samuel disse...

Bonito post!

Abraço