9 de março de 2011

Retiro na cidade - 1

Foto de Luis Lobo Henriques


A Palavra de Deus

«6Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há-de recompensar-te.» (Mateus, 6,6)

Limpeza de primavera

Em breve será Primavera, será necessário enclausurar-me? O sol finalmente brilha, irei esconder-me? Aferrolhar-me em casa, quando tudo me convida a sair, aqui está uma forma estranha de começar a Quaresma. Eu que queria finalmente fugir das coisas empilhadas e atamancadas no fundo da casa, debaixo da cama, em cima da secretária: os livros que nunca li, as peúgas desirmanados, a louça desarrumada. Um monte de coisas que não estão em ordem, que esperam para mais tarde e gostaríamos de esquecer. No fundo do nosso coração também existem muitas coisas empilhadas: querelas que nos afastam, perdões à espera, feridas mal saradas. Nem sempre gostamos de nos retirar para esses cantos das nossas vidas, preferimos ignorar esses lugares escondidos dentro de nós, escondidos atrás de portas fechadas com duas voltas da chave.

No entanto é para lá que o Senhor nos pede que vamos hoje: para os recantos escondidos da minha vida. «Retira-te para o fundo da tua casa». Não fiques aí, ao sol, franqueia uma a uma as portas, primeiro as mais fáceis de abrir. Encontra os lugares onde é bom permanecer: as salas familiares, acolhedoras. Aquelas que são apreciadas pelos teus amigos, a tua família, onde brilham as tuas qualidades.

Depois continua, e entra noutros quartos, mais íntimos: os sentimentos que não partilhas senão com poucas pessoas, os segredos, as fraquezas. E ao fundo, bem ao fundo chega junto daquela porta fechada. Abri-la parece-te talvez imprudente. Tudo o que por trás está tão mal arrumado não corre o risco de me cair em cima, de me ferir, me sujar?

Sabe, no entanto, que o mais belo dos reencontros te espera para além daquela porta. Porque Cristo se escondeu lá. Ele desertou do jardim ensolarado, do lugar acolhedor, do apartamento modelo. Ele adiantou-se a ti, para o quarto recôndito.

Abro? Mas de que tenho medo? Quando os discípulos, por medo, fecharam-se num quarto hermético depois da ressurreição, o Senhor não hesitou em vir para o meio deles. As suas vidas estavam cheias de sombras e de dúvidas, e é para esse quarto obscuro que Cristo veio trazer a luz da Sua ressurreição: «Confiai, sou eu!». Se isto resultou com eles porque não há-de resultar comigo? Deus não viria, não entraria, no que há de mais fechado em mim? Irei eu correr para longe do local onde ele me espera?

Além disso, é exactamente aqui que ele me irá ser útil. A arrumação, eu já a fiz vinte vezes na sala. Na frente da casa, o alpendre está impecável. Salvei as aparências, da fachada nada há a dizer. Mas este tempo de quaresma nada tem a ver com a renovação da fachada ou com a decoração do interior. Convida-nos mais a arejar até ao mais recôndito da casa, a deixarmo-nos tomar o fôlego do sopro vivo desses primeiros dias ensolarados.

Aqui já não sou eu quem O acolhe, é Ele que me acolhe. Esse quarto escondido no fundo de mim, ele conhece-o muito melhor do que eu. É ele, o quarto, que lhe interessa, pois é lá que ele tem mais trabalho a fazer. Pôr em ordem, consertar, escolher: uma verdadeira limpeza de Primavera.

É a altura exacta de nos virmos juntar a Cristo no quarto dos fundos, para lhe dar uma mão. Sem dúvida, com ele, o trabalho irá correr bem. Ele é que fará o trabalho, a nós basta-nos apenas rezar-lhe e segui-lo

Quem sabe? Com ele, talvez ousarei agarrar-me a essa série de nós complicados que paralisam certas relações? Com a Sua ajuda, talvez me aconteça meter o dedo nalguma ferida, para lhe pedir que as cure? Com a Sua força, talvez concerte dois ou três móveis, velharias encafuadas em mim, velhos talentos esquecidos escondidos nalguma roupa. Com a Sua doçura, eu reencontrarei algo de novo enterrado na poeira, para o fazer brilhar lá fora, no grande dia da minha vida.

Retirar-nos para os fundos, por momentos. Para nos escondermos uns tempos, no fresco de uma sombra e falar sem receio com Aquele com quem na sala, ou no jardim eu ousaria apenas cruzar-me.

Esse quarto será o nosso segredo durante toda a Quaresma. Desta porta, apenas nós, Ele e eu, temos a chave. Ninguém saberá o que tramamos em segredo, dia após dia nos fundos da minha casa. Apenas um ruído, em surdina: móveis que deslocamos, coisas que consertamos, um estaleiro enfurnado dentro de mim. Qualquer coisa como uma ressurreição, que sobe do mais fundo de mim mesmo, para fazer dos meus túmulos o mais belo jardim de Páscoa.


Traduzido de: http://www.retraitedanslaville.org/

1 comentário:

Anónimo disse...

fantastico!