Para a Sara, com carinho
No dia em que conheci o teu Pai, acabava eu de chegar a Santa Maria, o Sardinha colega meu ao passarmos por onde trabalhava a tua Mãe e vendo que o teu Pai lá estava puxou-me pelo braço, abriu a porta e disse:
- Quero apresentar-te a Ana que está apaixonada pelo teu Pai. Quase morri de vergonha, mas a verdade é que eu estava, mesmo, apaixonada pela escrita de Dias de Melo.
E porque nada do que eu tenha dito é suficiente, deixo-vos o texto que o Jornal Açoriano Oriental editou na sua edição de 1 de Setembro de 1996. Nessa época o Açoriano editava "crónicas" de Dias de Melo "Fumo do meu cachimbo". Guardei algumas e um destes dias ao remexer numa das caixas onde guardo "tralha" acumulada do meu gabinete de trabalho na NAV, era eu na altura "Chefa" como diria o meu querido Dinis, MCA do PDLMNA, encontrei esta:
Graças ao José Chíchero - III
"Pois deste jeito me tratava e falava o José Chíchero e se, para nós, era uma pessoa de família, para ele éramos nós igualmente pessoas da família dele, os nossos trabalhos eram trabalhos dele, os nossos cuidados eram cuidados dele, e naquele dia, de manhãzinha, mal acabava de luzir o buraco embarbaçado, enfarruscado, negro que nem um tição, com águas caindo a potes, não me lembro, penso mesmo que caía neve, aparece-nos em casa, entra-nos pela porta da cozinha dentro ensacado em roupas já encharcadas, por cima de tudo um alvacoto velho, esverdeado, não lhe conheci outro, na cabeça um boné ensebado enfiado até às orelhas, por sobre o boné o capuz de um saco de serapilheira caindo-lhe pelos ombros, pelas costas, nos pés, com meias grossas, cinzentas, de lã de ovelha, trabalho da mulher, albarcas, ele é que as fazia, de coiro de baleia que ele curtia
Minha Mãe, curvada junto ao lar, ateava, soprando penosamente, o lume na lenha de faia e incenso ressumando humidade debaixo da chaleira na grelha de ferro, ia ferver água para o café do almoço, café de favas, cevada, milho, batata doce, secava no forno a batata doce picava-a antes miudinha, moía no moinho de mão do Mudo da Feiticeira, com uma pinga de leite, açúcar nem o cheirávamos, a não ser num dia de festa, tinha um gosto muito gostinho, vinha o leite dos Feitais, da vaca Calçada do Tio Jorge, o leite e pão com queijo, fabrico da Tia Maria Augusta, e almoçávamos café com leite e pão com queijo, por aí, a não ser quem criasse vaca de seu, poucos papavam um almoço destes, era um pedaço de pão ou bolo de milho, já se sabe, sem mais nada, só água do talhão, -assim minha Mãe ateava o lume curvada junto ao lar, meu Pai, no vão da janela tínhamos o lava-mãos, a bacia, a toalha, o sabonete, e meu Pai, já com a cara ensaboada, ia barbear-se em frente ao espelhinho encostado a um dos vidros, em cima, a meio, na travessa da vidraça de guilhotina, e encara José Chíchero naquele preparo.
- Que fazes aqui?! – pergunta surpreendido.
Lá fora, aquela chuva, aquela ventania, o vento era rijo também, aquele frio, quase tenho a certeza aquela neve que caía, e o José Chíchero, calmo, bonacheirão:
- Venho para ir apanhar os cocos – cocos ou inhames vem dar ao mesmo, e meu Pai, olhos a olharem, espantados, por trás da espuma do sabão da barba na cara, a gilete na mão parada no ar:
- Apanhar inhames?! Tas doido?! Com um tempo destes?!
- A matança do porco é tal dia, tá i a cair.
- Há-de-se marcar outro dia, a Guiomar e eu já pensámos nisso, até já falei com o meu cunhado Jorge e com o mê sogro.
O José Chíchero não queria saber.
- Matai o porco quando quiserdes. O dia tá marcado. Fostes vós que o marcastes. Nunca vi desmarcar o dia da matança do porco, mas vós haveis de fazer como entenderdes: Pela minha parte, cabe-me apanhar cocos. Pra esse dia os cocos têm que ser apanhados hoje, o mais tardar.
E hoje eu vou apanhar os cocos.
Não me lembro nem do dia em que isto foi, não sei se já o disse, se o disse está dito, se o não disse nestes ementes o digo, mas, ou já eu tinha saído da Escola, ou a matança do porco seria para o 31 de Janeiro e isto foi numa quinta- feira, porque me lembro, isso lembro, de que fui para o Magraçal apanhar inhames, apanhar ou cavar, vem dar no mesmo, com o José Chíchero, disso lembro-me foi há cinquenta anos, prà i, mais coisa menos coisa, mas lembro-me, lembro-me como se fosse hoje, como é que não me havia de lembrar? Não há trabalho de terra, sempre quero que vocês saibam, que eu não tenha feito, bem novinho comecei, a trabalhar na terra alguns dias apanhei que nunca mais poderei esquecer, três principalmente, este foi um deles, um dos três, os outros não vêm agora ao caso, deste é que estamos a falar e este é que vou contar, em poucas palavras se conta.
Vocês bem vêem, meu Pai não ia deixar que o José Chíchero fosse sozinho para o Magraçal apanhar inhames, meu Pai, por isso, não ia, não podia ir, então lá fui eu com ele. Minha Mãe entrouxou-me em roupa, tudo roupas de lã, velhas mas de lã, e lã grossa, menos as calças que eram de cotim Marianim, o melhor que o meu Pai vendia na nossa loja , grosso também, grosso e muito bom, e a camisa de fora, de flanela, também grossa, o mais, de lã eram as ceroulas e a camisa de dentro, eram de meu Pai, cabiam dois iguais a mim dentro delas, de lã de ovelha, da ovelha que o meu Avô José Luzia criava atrás da burra, as duas sueras por fora da camisa de flanela, minha avó Maria Francisca é que as tinha feito, de lã, de fazenda de lã americana aí para um oitavo de polegada de espessura, o alvacoto castanho por cima de tudo aquilo, mandara-mo da Calafona minha Tia Prudência, irmã de meu Pai (por cima de tudo, não: por cima de tudo era o capuz do saco de serapilheira que levava enfiado na cabeça, por sobre o boné surrado de casimira velha, o capuz igual ao do José Chíchero, levava-o para o imitar), e de lã eram as meias nos pés calçados de albarcas, de coiro de baleia, como as do José Chícharo, não, albarcas de enjarroba, é como quem diz de pneu de automóvel, não havia automóvel por aqui, como que os havíamos de ter com aqueles caminhos de mil diabos, os pneus vinham de fora, mercavam-nos em S. Miguel, no verão, os homens dos iates, do “Andorinha”, do “Ribeirense”, compravam-nos, traziam-nos, vendiam-nos, vinham sem préstimo, prestavam para solas de sapatos e albarcas, de pala ou de bico, aquelas albarcas de bico fora o José Chíchero que mas fizera.”
Graças ao José Chíchero - III
"Pois deste jeito me tratava e falava o José Chíchero e se, para nós, era uma pessoa de família, para ele éramos nós igualmente pessoas da família dele, os nossos trabalhos eram trabalhos dele, os nossos cuidados eram cuidados dele, e naquele dia, de manhãzinha, mal acabava de luzir o buraco embarbaçado, enfarruscado, negro que nem um tição, com águas caindo a potes, não me lembro, penso mesmo que caía neve, aparece-nos em casa, entra-nos pela porta da cozinha dentro ensacado em roupas já encharcadas, por cima de tudo um alvacoto velho, esverdeado, não lhe conheci outro, na cabeça um boné ensebado enfiado até às orelhas, por sobre o boné o capuz de um saco de serapilheira caindo-lhe pelos ombros, pelas costas, nos pés, com meias grossas, cinzentas, de lã de ovelha, trabalho da mulher, albarcas, ele é que as fazia, de coiro de baleia que ele curtia
Minha Mãe, curvada junto ao lar, ateava, soprando penosamente, o lume na lenha de faia e incenso ressumando humidade debaixo da chaleira na grelha de ferro, ia ferver água para o café do almoço, café de favas, cevada, milho, batata doce, secava no forno a batata doce picava-a antes miudinha, moía no moinho de mão do Mudo da Feiticeira, com uma pinga de leite, açúcar nem o cheirávamos, a não ser num dia de festa, tinha um gosto muito gostinho, vinha o leite dos Feitais, da vaca Calçada do Tio Jorge, o leite e pão com queijo, fabrico da Tia Maria Augusta, e almoçávamos café com leite e pão com queijo, por aí, a não ser quem criasse vaca de seu, poucos papavam um almoço destes, era um pedaço de pão ou bolo de milho, já se sabe, sem mais nada, só água do talhão, -assim minha Mãe ateava o lume curvada junto ao lar, meu Pai, no vão da janela tínhamos o lava-mãos, a bacia, a toalha, o sabonete, e meu Pai, já com a cara ensaboada, ia barbear-se em frente ao espelhinho encostado a um dos vidros, em cima, a meio, na travessa da vidraça de guilhotina, e encara José Chíchero naquele preparo.
- Que fazes aqui?! – pergunta surpreendido.
Lá fora, aquela chuva, aquela ventania, o vento era rijo também, aquele frio, quase tenho a certeza aquela neve que caía, e o José Chíchero, calmo, bonacheirão:
- Venho para ir apanhar os cocos – cocos ou inhames vem dar ao mesmo, e meu Pai, olhos a olharem, espantados, por trás da espuma do sabão da barba na cara, a gilete na mão parada no ar:
- Apanhar inhames?! Tas doido?! Com um tempo destes?!
- A matança do porco é tal dia, tá i a cair.
- Há-de-se marcar outro dia, a Guiomar e eu já pensámos nisso, até já falei com o meu cunhado Jorge e com o mê sogro.
O José Chíchero não queria saber.
- Matai o porco quando quiserdes. O dia tá marcado. Fostes vós que o marcastes. Nunca vi desmarcar o dia da matança do porco, mas vós haveis de fazer como entenderdes: Pela minha parte, cabe-me apanhar cocos. Pra esse dia os cocos têm que ser apanhados hoje, o mais tardar.
E hoje eu vou apanhar os cocos.
Não me lembro nem do dia em que isto foi, não sei se já o disse, se o disse está dito, se o não disse nestes ementes o digo, mas, ou já eu tinha saído da Escola, ou a matança do porco seria para o 31 de Janeiro e isto foi numa quinta- feira, porque me lembro, isso lembro, de que fui para o Magraçal apanhar inhames, apanhar ou cavar, vem dar no mesmo, com o José Chíchero, disso lembro-me foi há cinquenta anos, prà i, mais coisa menos coisa, mas lembro-me, lembro-me como se fosse hoje, como é que não me havia de lembrar? Não há trabalho de terra, sempre quero que vocês saibam, que eu não tenha feito, bem novinho comecei, a trabalhar na terra alguns dias apanhei que nunca mais poderei esquecer, três principalmente, este foi um deles, um dos três, os outros não vêm agora ao caso, deste é que estamos a falar e este é que vou contar, em poucas palavras se conta.
Vocês bem vêem, meu Pai não ia deixar que o José Chíchero fosse sozinho para o Magraçal apanhar inhames, meu Pai, por isso, não ia, não podia ir, então lá fui eu com ele. Minha Mãe entrouxou-me em roupa, tudo roupas de lã, velhas mas de lã, e lã grossa, menos as calças que eram de cotim Marianim, o melhor que o meu Pai vendia na nossa loja , grosso também, grosso e muito bom, e a camisa de fora, de flanela, também grossa, o mais, de lã eram as ceroulas e a camisa de dentro, eram de meu Pai, cabiam dois iguais a mim dentro delas, de lã de ovelha, da ovelha que o meu Avô José Luzia criava atrás da burra, as duas sueras por fora da camisa de flanela, minha avó Maria Francisca é que as tinha feito, de lã, de fazenda de lã americana aí para um oitavo de polegada de espessura, o alvacoto castanho por cima de tudo aquilo, mandara-mo da Calafona minha Tia Prudência, irmã de meu Pai (por cima de tudo, não: por cima de tudo era o capuz do saco de serapilheira que levava enfiado na cabeça, por sobre o boné surrado de casimira velha, o capuz igual ao do José Chíchero, levava-o para o imitar), e de lã eram as meias nos pés calçados de albarcas, de coiro de baleia, como as do José Chícharo, não, albarcas de enjarroba, é como quem diz de pneu de automóvel, não havia automóvel por aqui, como que os havíamos de ter com aqueles caminhos de mil diabos, os pneus vinham de fora, mercavam-nos em S. Miguel, no verão, os homens dos iates, do “Andorinha”, do “Ribeirense”, compravam-nos, traziam-nos, vendiam-nos, vinham sem préstimo, prestavam para solas de sapatos e albarcas, de pala ou de bico, aquelas albarcas de bico fora o José Chíchero que mas fizera.”
E assim graças ao José Chíchero José Dias de Melo teve albarcas de bico com sola de enjorraba uma valente tareia e a roupa ensopada. Uma delícia a escrita deste picaroto, açoriano...do Mundo
Abraços marienses
Santa Maria, 9 de Abril de 2007
Ana Loura
1 comentário:
Ana
Delicioso este texto...
Os açores e a sua cultura tem coisas destas... Tão simples e ao mesmo tempo tão brilhantes...
Uma Boa Páscoa, e obrigado pelas visitas ao meu cantinho...
Nuno
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